Picolé de uva

    7 da manhã - tocou o despertador.
    Zé Henrique abriu os olhos e encarou o teto do seu quarto, já claro. Respirou fundo e tentou por poucos segundos se concentrar naquele teto acinzentado. 
    Hoje era o dia.
    Se sentou na cama e esfregou os olhos. Calçou os chinelos gastos e se levantou. Abriu as cortinas rasgadas que pouco escondiam o quarto do sol intenso.
    Saiu do quarto e deu de cara com Margarida. Ela latiu e começou a pular, feliz em vê-lo acordado.
    - Ô, Dinha, bom dia!
    Logo, Pitú e Carimbo se juntaram à festa matinal, enquanto Zé botava a água do café pra ferver e pegava uma bolacha de água e sal no armário sem porta.
    Toda manhã, era uma balbúrdia. Os cachorros amavam Zé. No meio daquela barulheira, contudo, ele ainda sentia falta de um som...
    - Ah, não. Hoje não. Hoje é o dia, Dinha!! É hoje! - ele espantou o pensamento, brincando com os cachorros e se distraindo com sua rotina matinal.
    Depois de tomar seu café preto no copo de requeijão, encheu os três potes de ração e arrastou os chinelos para o quintal, onde a segunda festa de toda manhã começava: as galinhas acordaram.
    Era uma bagunça. Elas lhe davam bom dia cacarejando, dando pulinhos e bicadinhas.
    - Bom dia, Preta! Bom dia, Azaleia! - ele as alegrava enquanto distribuía a comida.
    Voltou então pra dentro de casa e se pôs a lavar a louça. Não tinha muita coisa - um prato pra janta e um prato pro café da manhã, então terminou rápido por sua sorte.
    Os cachorros ainda latiam, alegres, e o seguiam de um lado para o outro, puxando sua bermuda. Ele ria com eles, brincando, enquanto andava pela casa. Tomou um banho rápido e correu para o quarto, pra se vestir.
    Tirou do armário uma bermuda limpa e uma camisa de mangas curtas. Se olhou ao espelho pra abotoar a camisa. Ali, entretanto, a festa pareceu esfriar. Ali, um outro Zé o encarava de volta. Um  Zé de olhos fundos e inchados. Um Zé com a pele queimada e o nariz vermelho. Um Zé com dor. Os dois Zés encostaram as mãos e respiraram bem fundo.
    Hoje era o dia.
    Depois de quase uma semana, o dia chegara. Só que... Não era bem só uma semana, né. Era, na verdade, depois de muitos anos.
    Ali, parado, olhando a si mesmo e à sua dor, Zé lembrou do último domingo.
    Lembrou do pai o chamando baixo: "Zézinho...". Lembrou dele andar até o quarto do pai, temendo pelo pior, e então entrar naquele aposento com cheiro de goiaba.
    Seu pai tinha a mão estendida e o corpo visivelmente desconfortável jogado na cama dura.
    Zé correu até o pai e lhe segurou a mão, ossuda e de unhas grandes. Viu a goiaba caída ao chão, ao pé da cama. Com os olhos marejados, voltou a olhar seu pai, que lhe disse, com a voz falhada:
    - Deixe disso, meu filho. Fique feliz pelo seu velho pai. Hoje, finalmente, a dor não veio dormir comigo. Hoje meu corpo não dói. Hoje só estou fraco... Deixei até cair a goiaba! Hehe - ele riu, mas emendou uma tosse. Ele amava goiabas.
    - Mas pai, como é que...
    - De um jeito ou de outro, Zézinho... Você, você... Você esteve comigo todos esses anos, sabe nossa música de cor e conhece o caminho. 
    - Não, não é isso... Eu conheço a música e o caminho, mas... mas... Preciso de você comigo.
    Seu pai sorriu e apertou sua mão:
    - As crianças é que precisam da gente, meu filho... José... José Henrique. Uva, né? Picolé de uva, é... 
    Zé derrubou as primeiras lágrimas quando o pai citou seu sabor favorito de picolé. Desde criança, sempre o de uva. Desde criança, não importava se frio ou se calor, seu pai lhe achava um picolé de uva.
    - É, pai, uva... 
    - Meu filho. Agora, é tudo seu. A praia toda é sua. Você tem de ir no sábado. Prometa.
    -Prometo, pai, prometo.
    - Agora, me deixe ir. Me deixe ir, Zézinho.
    O espelho rachou a ponta. Zé chacoalhou a cabeça e empurrou de volta pra garganta as lágrimas que começavam a subir.
    Terminou de abotoar a camisa e passou o gel no cabelo. De chinelo, saiu do quarto e por um segundo apenas, olhou para o fim do corredor, vendo a cabeceira da cama do pai. Saiu rápido dali. Foi à cozinha e deu tchau para os cachorros, que o animaram com lambidas e pulos.
    Fechou a porta de casa e, chegando ao quintal, deu de cara com a carriola do pai. 
    Não. A sua carriola.
    Ela era branca, com um pinguim desenhado, e tinha os detalhes em azul, com um pouco de ferrugem.
    Ele começou a assoviar, enquanto manobrou a carriola e saiu com ela do portão, fechando-o atrás de si.
    Enquanto caminhava pelas ruas de paralelepípedo, assoviava baixo, sentindo o vento lhe soprar os cabelos e ouvindo o mar ao longe.
    Quase uma hora depois, chegou ao depósito. Alguns homens acenaram, outros lhe deram bom dia, mas Beto veio apressado e lhe abraçou com força:
    - Bom dia, meu filho - apertando-lhe o ombro, mas sem dizer mais nada por alguns momentos. - Vem, vem, vamos encher teu carrinho.
    Zé o seguiu até os grandes e gastos freezers.
    Como numa dança, então, Zé e beto começaram a tirar os picolés do freezer e arrumá-los dentro da carriola.
    Quando terminaram, Zé fechou a carriola. Conferiu a pochete que ia pendurada nela, pra ver se tinha troco para os primeiros clientes. Bateu no bolso da camisa e sentiu a foto do pai escondida ali.
    - É, é isso, Beto.
    - É isso, Zé, meu filho. Te desejo um ótimo dia!
    Zé saiu do depósito e começou a caminhar para a Praia do Casebre - aos sábados, ele e o pai cobriam essa. O mar parecia lhe chamar e o Sol já ia bem menos tímido lhe acompanhando nessa outra longa caminhada. Encontrou alguns colegas pelo caminho, e eles se cumprimentavam de longe com as buzinas de suas carriolas, acenando. Não se importava com essas longas caminhadas. Elas eram só o começo do seu dia e ele as conhecia de cor, depois de tantos anos as fazendo com seu pai. Seus chinelos poderiam fazê-las sozinhos se quisessem! Ele riu de leve ao pensar nessa piada que seu pai sempre fazia. É, hoje era o dia e ia ser um bom dia!
    Perto das 11 da manhã, ele chegou à ponta da Praia do Casebre. O sol agora brilhava e serpenteava nas ondas esverdeadas. A praia estava começando a encher, já tinha muitas famílias e muitas crianças.
    Ele parou a carriola no topo da rampa de acesso à praia, olhando ao longe. Sentiu de perto a maresia brincar com seus cabelos escuros e fechou os ouvidos por um pouco, concentrado. Seu coração batia forte.
    Hoje era o dia. Hoje, depois de tantos e tantos anos. Hoje, depois de uma semana completa de dor e negação. Hoje, ele havia prometido. Uma última vez, conferiu a pochete, o bolso da camisa e a carriola. Tinha os 20 sabores prometidos. Antes de começar, contudo, ele separou um picolé de uva e um de goiaba como sua janta, escondendo-os dos demais. Sorriu ao fazer isso e quase pode sentir seu pai lhe afagando a cabeça com carinho.
    Enfim, olhou para a praia mais uma vez, inspirou e, quando expirou, começou a empurrar a carriola pela rampa, usando a buzina para marcar o ritmo de sua música:
    "Ô, menina, menino, tá vindo aí o sorveteiro.
    Se quiser um picolé é melhor ser bem ligeiro.
    Tem sorvete de mamão, limão, uva e melancia
    Tem também coco, chocolate morango e lichia.
    Se você gosta de creme, amora, melão e graviola
    Se apresse, vá logo, se não eu vou-me embora.
    Tem sorvete pra todo mundo, tem pra tudo que é gosto
    Em nenhuma praia você vai achar sorvete mais gostoso!"

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