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Mostrando postagens de abril, 2020

As águas de Nina

Hoje era o primeiro dia de Nina de volta à escola. Os últimos meses tinham sido obscuros. Ela se perdeu durante um bom tempo. Nem seus pais, nem sua irmã e nem mesmo Edu conseguiram fazê-la “voltar ao normal”. Ela estacionou atrás da escola, como fazia há tantos anos. Desligou o carro e ficou ali por alguns momentos, respirando fundo. Encarou seus próprios olhos pelo retrovisor. Viu suas olheiras, roxas, e sua testa agora cheia de rugas. Sua pele parecia viscosa. O choro lhe escalou a garganta, e seus olhos encheram. Ela os segurou. Pegou o celular e ligou para Edu.      - Oi, amor - ele atendeu rápido. Silêncio do lado dela. O som dela engolindo em seco. Ele respirou fundo do outro lado da linha:      - Vai ficar tudo bem. Vamos, você mesmo disse que isso ia te fazer bem. Não tem saudades deles?      - Tenho… - trêmula      - Então! - paciente - Tente. Tente só por hoje. Assim que tiver o intervalo,  me ligue e me conte como as primeiras horas foram. Eu estou aqui pra você,

Sucesso

     - Júlia! Ela se virou enquanto desligava a tela da sala de reunião e fechava seu computador, apressada para a próxima reunião.      - Ah, oi, Ana, tudo bem? - se encaminhando para a porta.      - Tudo! Eu só queria te dizer que achei sua apresentação ótima. Você finalmente provou pra aquele tonto que essa é a melhor opção.      - É… - ela riu de leve - espero que sim. Ele é mesmo um tonto, né?      - Ah… E como! - Ana bufou - Fique tranquila, você não é o único alvo. Todas nós somos. - e deu um tapinha nas costas de Júlia - Bom, te vejo por aí!      - Até mais! Enquanto se encaminhava à próxima sala de reunião, Júlia segurou um sorriso,  pensando como isso era engraçado. Como podia ser normal que um homem agisse de maneira tão esdrúxula e ainda assim fosse o mais jovem diretor da empresa, com promoção atrás de promoção, mesmo seu comportamento sendo reconhecidamente arrogante e antiético.  Ela estava cansada de Ricardo há um bom tempo, mas já tinha se acostumado a

Atrasada

O dia amanhecia devagar, ainda preguiçoso. Nenhuma nuvem, mas também nenhum Sol no céu por enquanto. O dia ia acordando vagaroso, e a cada bocejo, trazia um pouco mais de movimento ao hotel. Os recepcionistas aos poucos trocavam de lugar: os da manhã começando seu turno e os da noite, indo descansar. Eram 5:30am. Até os passarinhos ainda acordavam aos poucos, sonolentos, mas não Vivi, que já estava pronta para seu longo dia de trabalho. O único ambiente movimentado àquela hora era o restaurante, onde ela tomava seu café preto com um pão na chapa. Ali já tinha gente indo e vindo, pra lá e pra cá, arrumando as mesas e preparando o buffet. Vivi tomava seu café com certa pressa, de vez em quando acenando para seus colegas do hotel - ou melhor, resort (“rí-sór-chy”,  como Vivi tentava ensinar sua mãe a falar), e sempre olhando no relógio. Era o relógio de sua mãe. Nunca o tirava do pulso. - Não importa a hora que o relógio estiver marcando,  estarei pensando em você, minha filha - a

Ilhabela

Cinco eram as garrafas jogadas na areia, vazias. Em cima da mesa amarela de plástico, eles tinham um balde cheio de gelo e mais quatro garrafas de cerveja cheias. Eles riam morriam de rir falando besteira um para o outro, de vez em quando esbarrando na mesa e derrubando mais cerveza na areia. O sol começava a se pôr, mas o dia ainda ia bem claro. Estavam numa praia pequena e eram um dos últimos clientes daquela tarde. O mar tentava chegar cada vez mais perto deles para ouvir do que tanto riam. Ela tinha o cabelo ainda todo molhado, de vez em quando pingando água salgada nas costas e pernas, bronzeadas. Ele tinha os dois pés enfiados na areia fina e os óculos de sol no rosto. Estavam ali há boas horas, mas não sabiam quantas. Também não sabiam que horas eram agora e, na verdade, já não se importavam. Estavam de férias e não tinham pressa. Já não sabiam mais o que estavam falando, só que riam. E riam. E bebiam. E depois riam mais. As cabeças rodavam muito de leve, iam e vim bem

O lago dela

Respira de leve, quieta. Não tira os olho do horizonte, por cima do lago que se mexe delicado. Se concentra no barulho da água indo e vindo. Aprecia os claros tons de verde daquele Lago d'Orta que conhecia tão bem. Sente a grama fofa sob seus pés descalços. Sente o lago quase beijando seus dedos do pé. Consegue sentir quão frio o lago está, mesmo sem que ele a toque. Respira de novo, profundo. O sol acaricia o gramado com tons laranjas. Já devem passar das sete horas. Como ela ama sentir o verão chegando na Itália. Ouve de longe alguns passarinhos discutindo por comida, e crianças reclamando para os pais que as tiram com força do lago, porque querem ficar mais. Apesar de sentir sentimentos tão doces e leves, tão rosa e branco, ela respira de novo, profundo. O peito afunda. Ela olha para o caderno deixado ao lado. A página em branco. A caneta caída, inútil. Fecha os olhos por um pouco, quieta, só ouvindo o lago indo. E depois vindo. Leve como o ar daquela tarde. "Que

Antes de Dormir

Um casal de velhinhos no metrô. Os dois entram no trem juntos. Vestem roupas bem quentinhas e modernas. Devem ter por volta dos 70 anos de idade. Ela tem o cabelo branco bem ralo, cortado curtinho, mas usa brincos pendurados. Olhos azul piscina detrás de óculos arredondados. Ele, uma jaquetona verde e uma mochila também verde, com tigres rosas. Aparelho de surdez em ambos os ouvidos. Além dos óculos, claro. Ela se senta e ele também, um à frente do outro. Ele pega o jornal, divide em 2 e lhe dá metade pra ler. Passam a viagem toda lendo. Será que quando se deitam pra dormir, ela ainda dorme no peito dele? Como será que é a sensação de logo antes de adormecer, se dar conta que passaram uma vida toda juntos?