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Lupo.

Era sempre naquele mesmo horário, quando a luz já quase sumiu do céu, e você não sabe ao certo se o seu dia já está acabando ou se ainda está sonhando, que eu, todos os dias, trocava olhares com ele. Ele quase sempre me correspondia. E quando não o fazia, ah... Que dor... Meu dia acabava ali mesmo. Ele tinha pra ele um quintal sujo e escuro, um portão já bastante enferrujado, e quase nenhuma atenção. Exceto talvez a minha, que ultrapassava o limite de qualquer outro pedestre que por ali passava, aposto. Eu atravessava a rua e andava por aquela calçada ansiosa por vê-lo, ansiosa por brincar de quem desvia o olhar primeiro (eu sempre perdia). E quando eu chegava ao portão daquela casa... Mal sei explicar o sentimento que me acometia. Meu amigo era bastante grande e muito peludo. Os pelos eram escuros, e o fucinho, bem longo. Se assemelhava muito mais aos seus parentes lupinos que a outros cães.  Os olhos, contudo, assemelhavam-se aos de humanos. Cheios de significados ocultos. Oblíquos,

De novo, o ombro.

Estávamos na fila do caixa de um restaurante novo pra ele. Eu ia à frente dele. E ai, no meio da conversa, ele, por trás de mim, passou um braço pela minha cintura e ventre. O braço. O ombro onde apoiei a cabeça. O pescoço. E o cheiro... O cheiro. Ele inteiro me segurava como se eu pudesse ser envolvida por inteiro, como se assim me dissesse que me protegeria de tudo.  E ainda bem! Ainda bem... Porque, se ele não me segurasse daquele jeito, naquele abraço, meus joelhos me trairiam. A velocidade da Terra girando ia ser incrivelmente maior do que a minha capacidade de absorver tudo. Ele. Todo. Como se as almas não estivessem juntas há mais de ano, ele me fazia sentir sempre nova. Sempre novos. Sempre.

Matheus.

Eles eram irmãos, pelo que pude perceber. Ambos eram muito vívidos e tinham as idades próximas. Nove ou dez anos. Eram sobrinhos do casal que se aninhava perto da porta daquele vagão do trem. Eu assistia ao jogo deles de correr de um lado pro outro, quando uma figura muito pequena me chamou a atenção. Ela era muito pequena mesmo. Era mais baixa do que eu sentada. E andava mancando, com roupas gastas e já cinzentas e um rosto que já havia deixado de ser o de uma mulher disposta há muito. Ela pedia repetidamente por apenas dez centavos, e quando foi a minha vez, ela se apoiou na minha mochila e me olhou com olhos que não me viam. Os meus viram, e se viraram pra dentro de mim mesma. Por alguns segundos, eu me perdi em devaneios. Quem me tirou deles foi a menina-irmã, que enunciava: "Matheus!! Tá surdo?? Tia, o Matheus tá surdo!". Foquei meus olhos embaçados nele. O menino tinha perdido totalmente o interesse pela corrida e olhava fixo, com o semblante gelado, para trás de mum, q

Pequenino.

Ele foi chegando de mansinho, com uma corrida que quase não passava de uma caminhada, com os bracinhos dobrados à altura do tórax. Era pequeno, mal devia me alcançar a cintura. Tinha o cabelo raspado rente à cabeça. A pele beirava o tom daqueles chocolates bem doces. E os olhos... Os olhos eram do tamanho de duas ameixas, escuros iguais, mas reluzentes como as estrelas que começavam a dividir o céu com o Sol que já se ia. O menino corria à frente dos pais, que andavam com mais calma, conversando sobre algum assunto leve. Eu, assim como eles, caminhava, mas com a mochila nas costas e talvez uma cara não tão aberta, porque o pequeno me olhava meio desconfiado. Me olhava com aquele jeito de criança que espera ser repreendido pelo adulto mais próximos. O miúdo jogging dele quase não alcançava minhas passadas normais. Ele me olhava de baixo pra cima, desconfiado. Eu o olhava de cima pra baixo, sisuda. Os olhos dele brilharam. Os meus reluziram de volta. Abri um sorriso. Ele se es

Olhos Fechados

Cheiro de café. Cheiro de café e roupa lavada. Tic, cinco. Tac, quinze. Cinco e devagar quinze. Cinco e cinza. Travesseiro fofo demais e um edredom bem quentinho. Pra que abrir os olhos? O pensamento de por os pés no chão já é dolorido. O novelo na garganta ainda não desceu. Mais quente que a cama, são minhas pálpebras. Mais fofas e gordinhas que o travesseiro também. Sigur Rós rondando todo o ambiente, mesmo que em silêncio, mesmo que antes mesmo de saber de sua música. Um resquício de sol vespertino se espreguiçando na cama, triste igual. Vozes fúnebres vindo de lá de longe, numa cozinha a um quilômetro de distância. Pra que por os pés no chão? Que chão? Me diz que chão. O que agora te separa de mim?

T

Como um travesseiro depois da soneca, ela era macia. Era macia e doce. E pequena. Seu corpo, com ossos de passarinho, se encaixava perfeitamente no meu abraço. Tinha os pulsos finos e as mãos pequenas. Uma delicadeza de bailarina. Mas não era nem de longe fraca, como se podia ver pelos cabelos grossos, curtos e resistentes. Resistiam. A franja, teimosa, às vezes lhe cobriam os olhos que podiam parecer doces demais, mas quando os deixava à mostra... Ah, que deleite! Eram verdes, compreensivos, determinados e por vezes até melancólico. Eles falavam baixo, mas falavam firme. Com poucas consoantes, todavia. Ela era fluida, sem movimentos bruscos ou que interrompessem seu caminho natural. Talvez por isso fosse tão boa dançarina. E também atriz. E também mulher. E menina. Me era inevitável chamá-la de "pequena". Porque a mim, me parecia tão minha. Apesar de ver nela contida sua total liberdade. Todavia... É, era um pouco minha. E eu, talvez soubesse, bastante dela. De