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O abraço.

  Uma nuvem pairava ao longe. Ela caminhava devagar pelo céu azul. Até parecia o... É, parecia o chapéu de Lewis. Aquele que ele gostava de usar quando saía pra caminhar pelo parque. Ele dizia que ajudava a se camuflar no meio do bosque, e por isso acabava conseguindo avistar mais pássaros. E como ele amava os pássaros! Desde que eram crianças e fingiam que o jardim da mamãe era uma floresta... James respirou fundo, demorando a se desvencilhar da nuvem e daquelas memórias, mas quando finalmente desviou o olhar, voltou-se para seus velhos dedos enrugados, as unhas amarelas, pendendo do dispenser de moedas do telefone. Era uma sensação engraçada estar ali naquela cabine telefônica. A porta fechada atrás de si abafava todo o som da grande avenida, e o deixava observar. Ele então observava. Segurando o telefone à orelha, ele olhava pelo vidro da cabine. Via muita vida lá fora, e sentia pouca ali dentro. O ar era parado e pesado. Seus pulmões demoravam a se encher, parecia. Havia um cheiro

Só.

  - E você, pequena? Que quer ser quando crescer? Primeiro, ela olhou para mamãe, que estava conversando com a tia Ju mais ao longe. Depois, olhou ao redor, observando vovô e vovó num canto, papai no outro, e ouvindo as vozes do resto da família animadas mais ao longe, na cozinha. Então voltou para quem lhe havia feito a pergunta e respondeu, certeira: - Só. Quero ser só.

Nº 12.

  O Sol já ia se pondo quando Rafaella deu tchau para os hóspedes. Eram em três: um casal e um amigo. Todos muito simpáticos. Deram tchau mais de uma vez, acenando de longe, e se encaminharam para a avenida principal. Ela então se virou e caminhou de volta para o prédio. Subiu as escadas sem pressa, brincando com as chaves na mão. É, eles foram hóspedes bem agradáveis. Como será que era a vida deles longe dali? Será que eles eram sempre felizes daquele jeito? Eles pareciam tão jovens, alegres, cheios de vida e... Abriu a porta pesada de madeira. Andou pelo apartamento, ajeitando coisa e outra. Empurrando uma cadeira aqui, fechando uma janela ali. Não precisava fazer muito porque em breve Tatiana viria ajudá-la com a faxina. Antes de fechar a janela da sacada, ela se permitir sentar ali, apreciando a vista. Conseguia ver uma nesguinha do mar ao longe. Apoiou os braços na cabeça e esticou as pernas, respirando devagar. Era uma sensação boa sentir a maresia lhe beijar a pele assim. Ficou

Um café amargo

     Tomava meu café e, para matar alguns minutos que tinha livres, rolava meu Instagram devagar, lendo algumas postagens e ignorando outras.      Ultimamente, criei o hábito de, a cada foto que vejo, me perguntar se de fato conheço aquela pessoa e se faz alguma diferença saber o que passa em sua vida. Se a resposta é sim, deixo-a ali, até que me questione em algum  outro momento. Se a resposta é não, vou até seu perfil e não só paro de seguir-lhe como a removo dos meus seguidores.     Normalmente, é um processo indolor, porque as respostas costumam ser bem simple: sim ou não.     Contudo, nessa manhã, vi uma foto de Angélica.     Era seu aniversário. A foto a mostrava muito feliz e toda sorrisos,  cantando parabéns atrás de um bolo elaborado. A legenda era um tanto clichê (mas quem de nós é que não é?) e os comentários me pareciam vazios.     Ela fazia 34 anos. Agora tinha o cabelo um pouco mais curto, mas o sorriso ainda era o mesmo.     Vê-la feliz daquele jeito me fez sorrir involu

Picolé de uva

    7 da manhã - tocou o despertador.     Zé Henrique abriu os olhos e encarou o teto do seu quarto, já claro. Respirou fundo e tentou por poucos segundos se concentrar naquele teto acinzentado.      Hoje era o dia.     Se sentou na cama e esfregou os olhos. Calçou os chinelos gastos e se levantou. Abriu as cortinas rasgadas que pouco escondiam o quarto do sol intenso.     Saiu do quarto e deu de cara com Margarida. Ela latiu e começou a pular, feliz em vê-lo acordado.     - Ô, Dinha, bom dia!     Logo, Pitú e Carimbo se juntaram à festa matinal, enquanto Zé botava a água do café pra ferver e pegava uma bolacha de água e sal no armário sem porta.     Toda manhã, era uma balbúrdia. Os cachorros amavam Zé. No meio daquela barulheira, contudo, ele ainda sentia falta de um som...     - Ah, não. Hoje não. Hoje é o dia, Dinha!! É hoje! - ele espantou o pensamento, brincando com os cachorros e se distraindo com sua rotina matinal.     Depois de tomar seu café preto no copo de requeijão, enche

18

Ela olhou no relógio, impaciente, balançando o pé da perna cruzada, enquanto olhava pra TV, sem prestar atenção. Alguns minutos depois, olhou de novo no relógio: dez e meia da noite! Ah, não, agora já era demais. Levantou bruscamente e marchou até o quarto de Ana Paula, abrindo com força a porta: - Ana Paula, pelo amor de Deus! Que horas vamos sair?! São dez e meia, filha! Ana terminou de passar o rímel, correu para desligar a música que tocava alto,  borrifou o perfume, se olhou uma última vez no espelho e enfim olhou pra mãe, sorridente: - Agora, vamos, vamos! Abraçou-a por trás enquanto a empurrava de volta para sala, dançando, brincalhona, mas Regina estava bem impaciente e andou dura até a cozinha, pegou a chave do carro e gritou: - Fernando, estamos indo! - Tchau, pai! - Ana Paula gritou. - Tchau, filha, boa festa! Regina revirou os olhos. Ele deveria reprovar isso tudo! Onde já se viu… Saindo de casa às dez e meia da noit

01:30am

01:30am. Nina gritou. Cada vez mais alto, cada vez mais agudo, gritou, gritou e gritou:      - Mamãããããããããããeeee!! Aaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii Daniela acordou, assustada. O travesseiro molhado de suor frio, a franja colada na testa, o coração pulando, como se fosse lhe rasgar o peito. Sentou na cama rápido. Olhou o relógio: 01:31am. “Caralho, de novo!”, num meio pensamento, enquanto andava para o corredor e se apressava em direção ao quarto de Nina. Pisou de leve no taco perto da porta do quarto dela, porque ele sempre estalava, e ela não queria acordá-la de novo. Abriu a porta bem devagar e silenciosa. Viu o abajur projetando os unicórnios rosa na parede e Nina dormindo profundamente, quietinha, de costas para a porta. Daniela entrou no quarto e agachou ao lado da cama de Nina. Passou a mão nos cabelos curtinhos da nuca dela e suspirou baixo. Nina resmungou algo baixo, mas continuou dormindo. Daniela saiu do quarto sem fazer barulh

Arrancado

     - Peraí, antes de desligar, vou chamar seu pai pra te dar um oi!       -   Ah, não, mãe! - ele falou apressado, revirando os olhos - Não precisa! - mas ela já tinha saído da frente da câmera, ele agora só via o sofá e aquele quadro da sala da casa deles.         Aquele quadro sempre o deixou aflito. Era abstrato, mas Victor sempre parecia enxergar um único olho, seco, o encarando friamente.         Ele odiava ter que ligar pra sua mãe toda semana, mas era a condição que ela lhe havia imposto: todo domingo, às 13h, se ligariam pra “enganar a distância”, ela dizia.         Ele havia finalmente se mudado da casa de seus pais. Vivia agora numa outra cidade, num outro estado, a muitos quilômetros de distância. Morava num apartamento pequeno. Tinha um quarto só seu, mas dividia a casa com outros dois garotos.         Sua mãe não amava essa situação nova, mas a condição da videochamada semanal a deixava mais tranquila. E por mais que Victor odiasse isso… Ele a amava muito, mais do q

As águas de Nina

Hoje era o primeiro dia de Nina de volta à escola. Os últimos meses tinham sido obscuros. Ela se perdeu durante um bom tempo. Nem seus pais, nem sua irmã e nem mesmo Edu conseguiram fazê-la “voltar ao normal”. Ela estacionou atrás da escola, como fazia há tantos anos. Desligou o carro e ficou ali por alguns momentos, respirando fundo. Encarou seus próprios olhos pelo retrovisor. Viu suas olheiras, roxas, e sua testa agora cheia de rugas. Sua pele parecia viscosa. O choro lhe escalou a garganta, e seus olhos encheram. Ela os segurou. Pegou o celular e ligou para Edu.      - Oi, amor - ele atendeu rápido. Silêncio do lado dela. O som dela engolindo em seco. Ele respirou fundo do outro lado da linha:      - Vai ficar tudo bem. Vamos, você mesmo disse que isso ia te fazer bem. Não tem saudades deles?      - Tenho… - trêmula      - Então! - paciente - Tente. Tente só por hoje. Assim que tiver o intervalo,  me ligue e me conte como as primeiras horas foram. Eu estou aqui pra você,

Sucesso

     - Júlia! Ela se virou enquanto desligava a tela da sala de reunião e fechava seu computador, apressada para a próxima reunião.      - Ah, oi, Ana, tudo bem? - se encaminhando para a porta.      - Tudo! Eu só queria te dizer que achei sua apresentação ótima. Você finalmente provou pra aquele tonto que essa é a melhor opção.      - É… - ela riu de leve - espero que sim. Ele é mesmo um tonto, né?      - Ah… E como! - Ana bufou - Fique tranquila, você não é o único alvo. Todas nós somos. - e deu um tapinha nas costas de Júlia - Bom, te vejo por aí!      - Até mais! Enquanto se encaminhava à próxima sala de reunião, Júlia segurou um sorriso,  pensando como isso era engraçado. Como podia ser normal que um homem agisse de maneira tão esdrúxula e ainda assim fosse o mais jovem diretor da empresa, com promoção atrás de promoção, mesmo seu comportamento sendo reconhecidamente arrogante e antiético.  Ela estava cansada de Ricardo há um bom tempo, mas já tinha se acostumado a

Atrasada

O dia amanhecia devagar, ainda preguiçoso. Nenhuma nuvem, mas também nenhum Sol no céu por enquanto. O dia ia acordando vagaroso, e a cada bocejo, trazia um pouco mais de movimento ao hotel. Os recepcionistas aos poucos trocavam de lugar: os da manhã começando seu turno e os da noite, indo descansar. Eram 5:30am. Até os passarinhos ainda acordavam aos poucos, sonolentos, mas não Vivi, que já estava pronta para seu longo dia de trabalho. O único ambiente movimentado àquela hora era o restaurante, onde ela tomava seu café preto com um pão na chapa. Ali já tinha gente indo e vindo, pra lá e pra cá, arrumando as mesas e preparando o buffet. Vivi tomava seu café com certa pressa, de vez em quando acenando para seus colegas do hotel - ou melhor, resort (“rí-sór-chy”,  como Vivi tentava ensinar sua mãe a falar), e sempre olhando no relógio. Era o relógio de sua mãe. Nunca o tirava do pulso. - Não importa a hora que o relógio estiver marcando,  estarei pensando em você, minha filha - a