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Mostrando postagens com o rótulo Doces Sentimentos

Flutuando

Tem um lugar dentro de mim onde guardo muitas coisas. Eu quase nunca vou lá.  É um lugar com uma luz baixa azulada, e bem empoeirado. Às vezes tem um som quieto, que me lembra Sigur Rós, mas na maioria das vezes, é apenas silêncio com alguns ecos de vozes que quase soam conhecidas. Não é como se eu não gostasse de lá, porque ele também é meu, e as coisas que guardo lá, eu... Eu as amo muito. De alguma forma, elas são algumas das minhas coisas mais preciosas. É só que... é difícil de achar o caminho de lá e mais difícil ainda achar o caminho de volta. Esse quarto, cômodo, canto, esse lugar que não tem nome tem as paredes da casa do vô Germano e também as camas do quarto dos meus tios com cheiro de roupa lavada, mas também tem o quintal da casa de Pérola, com uma mangueira enorme, e a sombra de um gato rajado. Tem o canto da sala onde me encolhi e chorei quando pedi pra levarem um brinquedo de papel que eu fiz especialmente pra vó Elza, e me disseram que ela não podia mais recebê-lo....

Ecos

Quando eu o vi, eu não sabia. Eu não sabia. Não tinha como saber - eu nem o conhecia. Também se conhecesse, não sei dizer se o haveria reconhecido. A escuridão era rasgada por raios roxos, verdes e vermelhos intermitentes, acompanhando sons profundos e graves que vinham do palco. A música que vinha de lá não era muito inteligível, mas o modo como Alma mesclava a guitarra e vocais aéreos com ecos e algum teclado tornava tudo um pouco onírico. As cordas da guitarra rebombavam nas caixas de som e faziam meu peito afundar. Foi ali, recostada a uma parede bem ao fundo, que o vi. Ele era baixo. Tinha a cabeça recém-raspada, orelhas meio protuberantes e ombros tensos. Eu não sabia o que lhe passava pela cabeça. Ele pediu uma cerveja e se encostou no bar, um pouco à minha frente. Pude ver que ele tinha uma barba rala e bem loira, mal se distinguindo de sua pele tão branca. Tinha um nariz meio comprido e dedos curtos, se agarrando ao copo de pint. Eu sinceramente não sabia que ele se sentia daq...

18

Ela olhou no relógio, impaciente, balançando o pé da perna cruzada, enquanto olhava pra TV, sem prestar atenção. Alguns minutos depois, olhou de novo no relógio: dez e meia da noite! Ah, não, agora já era demais. Levantou bruscamente e marchou até o quarto de Ana Paula, abrindo com força a porta: - Ana Paula, pelo amor de Deus! Que horas vamos sair?! São dez e meia, filha! Ana terminou de passar o rímel, correu para desligar a música que tocava alto,  borrifou o perfume, se olhou uma última vez no espelho e enfim olhou pra mãe, sorridente: - Agora, vamos, vamos! Abraçou-a por trás enquanto a empurrava de volta para sala, dançando, brincalhona, mas Regina estava bem impaciente e andou dura até a cozinha, pegou a chave do carro e gritou: - Fernando, estamos indo! - Tchau, pai! - Ana Paula gritou. - Tchau, filha, boa festa! Regina revirou os olhos. Ele deveria reprovar isso tudo! Onde já se viu… Saindo de casa às dez e meia da ...

As águas de Nina

Hoje era o primeiro dia de Nina de volta à escola. Os últimos meses tinham sido obscuros. Ela se perdeu durante um bom tempo. Nem seus pais, nem sua irmã e nem mesmo Edu conseguiram fazê-la “voltar ao normal”. Ela estacionou atrás da escola, como fazia há tantos anos. Desligou o carro e ficou ali por alguns momentos, respirando fundo. Encarou seus próprios olhos pelo retrovisor. Viu suas olheiras, roxas, e sua testa agora cheia de rugas. Sua pele parecia viscosa. O choro lhe escalou a garganta, e seus olhos encheram. Ela os segurou. Pegou o celular e ligou para Edu.      - Oi, amor - ele atendeu rápido. Silêncio do lado dela. O som dela engolindo em seco. Ele respirou fundo do outro lado da linha:      - Vai ficar tudo bem. Vamos, você mesmo disse que isso ia te fazer bem. Não tem saudades deles?      - Tenho… - trêmula      - Então! - paciente - Tente. Tente só por hoje. Assim que tiver o intervalo,  me ligue e...

Ilhabela

Cinco eram as garrafas jogadas na areia, vazias. Em cima da mesa amarela de plástico, eles tinham um balde cheio de gelo e mais quatro garrafas de cerveja cheias. Eles riam morriam de rir falando besteira um para o outro, de vez em quando esbarrando na mesa e derrubando mais cerveza na areia. O sol começava a se pôr, mas o dia ainda ia bem claro. Estavam numa praia pequena e eram um dos últimos clientes daquela tarde. O mar tentava chegar cada vez mais perto deles para ouvir do que tanto riam. Ela tinha o cabelo ainda todo molhado, de vez em quando pingando água salgada nas costas e pernas, bronzeadas. Ele tinha os dois pés enfiados na areia fina e os óculos de sol no rosto. Estavam ali há boas horas, mas não sabiam quantas. Também não sabiam que horas eram agora e, na verdade, já não se importavam. Estavam de férias e não tinham pressa. Já não sabiam mais o que estavam falando, só que riam. E riam. E bebiam. E depois riam mais. As cabeças rodavam muito de leve, iam e vim bem ...

O lago dela

Respira de leve, quieta. Não tira os olho do horizonte, por cima do lago que se mexe delicado. Se concentra no barulho da água indo e vindo. Aprecia os claros tons de verde daquele Lago d'Orta que conhecia tão bem. Sente a grama fofa sob seus pés descalços. Sente o lago quase beijando seus dedos do pé. Consegue sentir quão frio o lago está, mesmo sem que ele a toque. Respira de novo, profundo. O sol acaricia o gramado com tons laranjas. Já devem passar das sete horas. Como ela ama sentir o verão chegando na Itália. Ouve de longe alguns passarinhos discutindo por comida, e crianças reclamando para os pais que as tiram com força do lago, porque querem ficar mais. Apesar de sentir sentimentos tão doces e leves, tão rosa e branco, ela respira de novo, profundo. O peito afunda. Ela olha para o caderno deixado ao lado. A página em branco. A caneta caída, inútil. Fecha os olhos por um pouco, quieta, só ouvindo o lago indo. E depois vindo. Leve como o ar daquela tarde. "Que...

Antes de Dormir

Um casal de velhinhos no metrô. Os dois entram no trem juntos. Vestem roupas bem quentinhas e modernas. Devem ter por volta dos 70 anos de idade. Ela tem o cabelo branco bem ralo, cortado curtinho, mas usa brincos pendurados. Olhos azul piscina detrás de óculos arredondados. Ele, uma jaquetona verde e uma mochila também verde, com tigres rosas. Aparelho de surdez em ambos os ouvidos. Além dos óculos, claro. Ela se senta e ele também, um à frente do outro. Ele pega o jornal, divide em 2 e lhe dá metade pra ler. Passam a viagem toda lendo. Será que quando se deitam pra dormir, ela ainda dorme no peito dele? Como será que é a sensação de logo antes de adormecer, se dar conta que passaram uma vida toda juntos?

Metade de mim.

5 de janeiro de 2020. 2020... Esse é, mais uma vez, um novo impulso de voltar a escrever. De me revirar a mim mesma e tentar olhar pra dentro. Eu já falei isso tantas vezes, já tentei e já falhei tantas vezes... Acabei de abrir meu próprio blog e percebi que as primeiras postagem datam de 2007. Isso aqui tem 13 anos - exatamente metade da minha vida. Tem no mínimo uns 8 que ninguém além de mim lê nada por aqui. E quem leria, né? Se nem eu mesma me dou ao trabalho de ler e sequer de escrever. Digo que me faz mal reler coisas antigas que eu mesma me escrevi, que me faz reviver sentimentos indesejáveis. Acho que, no fundo, me faz me sentir nostálgica e triste de não ser mais tão jovem nem ter mais o mesmo vigor e a mesma cabeça borbulhante. Acho que me tornei cada vez mais cinza. Porra, 13 anos fazem muita diferença after all. Eu tinha 2 grandes sonhos na vida: morar em Londres e ser uma escritora muito foda. Eu não achei que algum dia fosse realizar nenhum deles. Bom, já ...

Saudades da Bahia

O barulho do mar já ia longe, quase não se ouvia. Ele abriu o portãozinho, que rangeu lhe dando boas-vindas. Arrastou o pé com as chinelas já gastas pelo ladrilho do quintal comprido, se esgueirando para passar no corredor estreito sem derrubar os chapéus e redes que tinha na mão. Lá do fundo da casa, veio correndo Preta, com as patas sujas e o pelo desgrenhado. - Ôh, Pretinha, cheguei, minha flô - acariciando a cabeça da cadela. Ela latiu, pulou e se jogou com a barriga para cima, com fome. - Hoje vai sê o mesmo pão de ontem, visse. Não vendi um chapéu que fosse, Preta. Sílvio apoiou os badulaques ao chão, com cuidado, e olhou para o céu. Fechou os olhos que tanto lacrimejavam, cansados da areia. Abriu os ouvidos e ouviu distante um forró animado, com "ooohs" e "aaaahs" de gente feliz. Quase conseguiu sentir o calor emanando dos casais ouriçados e cheios de cerveja. Sorriu pequeno e inspirou. Que saudades da Bahia.

Clareia

Leve abrir dos olhos. Gosto de cerveja ainda na boca. Inspira. Expira. O dia já vai claro, mas a noite de ontem ainda parece próxima. Rasa tontura Ele respira também, profundo. Seu peito sobe, e desce, junto com minha cabeça. Abro mais um pouquinho os olhos. Meu nariz encosta seu queixo. Inspiro mais uma vez. Beijo seu ombro, me aninho melhor, beijo seu pescoço. Não há melhor manhã que essa.

Mendigos.

Ele era o que chamamos de mendigo. Um dos mais pobres. Sentava numa mureta da esquina, com as roupas maltrapilhas e malcheirosas, rotas. Tinhas a muletas também apoiadas à mureta, enquanto descansava sua única perna. Tinha uma toca à cabeça e cabelos muito ralhos e grisalhos. A vida não lhe tinha sido leve. Tinha o feito sujo, desgraçado e pobre. Muito pobre. À sua frente, contudo, sentava um cachorro. Um vira-lata, assim como ele mesmo. Com o pelo indefinido e até meio grisalho. Se postou ali e ali ficou. Sentado, encarando o mendigo. Encarando. Encantado. Sua admiração crescia e crescia, naqueles pequenos olhinhos cintilantes. Era tão visível que arrancou do mendigo um grande sorriso. O mendigo lhe estendeu a mão. Ele lhe estendeu a patinha direita em retorno. Os dois ficaram se encarando, de mãos dadas, infinitamente. Os dois seres mais ricos do mundo.

Delorean

O céu estava azul claro, quase cinzento, mas com a promessa de alguns raios de sol, como há muito não prometia. O vento beijava de leve a janela do espaçoso e tranquilo apartamento. Ela apoiou as duas mãos no parapeito daquela janela, que servia de apoio pra algumas almofadas e já tinha servido de cantinho da leitura. A cidade se estendia à sua frente, meio cinza, mas com muitas árvores. Ela girou a cabeça devagar num sentido e depois, no outro. Bocejou e se esticou, ainda despertando. O cheiro de café lhe aquecia. A cidade continuava se estendendo, bem como seus pensamentos. Inspirou devagar e sorriu de canto... Pensar que, há alguns anos, achava que aquilo jamais aconteceria, que ela nunca nunquinha estaria ali... Riu de leve, sozinha, e bocejou mais uma vez, desdenhando da própria inocência. Com achou que não conseguiria? Mais cheiro de café. Passos leves, descalços, com um leve arrastar de moletom pelo chão lígneo. Ela sentiu os braços fortes e quentes a envolverem por ...

Tristeza.

Tita ia à padaria do seu Mateu todo domingo pela manhã. Neste, não foi diferente. Exceto pelo que houve lá dentro. Ela já tinha passado dos 80 anos, mas ainda andava e ouvia bem. Seu único problema era que seu maior defeito, o de nunca querer falar sobre seus sentimentos, havia se tornado de fato uma doença: não conseguia mais falar. Pediu os pães e também um doce que comeria depois do almoço e aguardou, perto da janela. Um rapazinho entrou correndo e foi logo pedindo ao seu Mateu o que queria. Ele era esguio e tinha os cabelos bem lisos, castanhos. Quando foi perguntado sobre que sabor de pão recheado ele queria, ficou na dúvida. Se voltou pra trás e gritou: - Dona Carolina, que sabor mais te apetece? Tita buscou, ávida, pela mulher que deveria responder. Esse nome sempre a deixava sobressaltada. Seus olhos a encontraram, apoiada numa cadeira, olhando algumas revistas. Ela não havia ouvido o rapaz. Como sempre, não ouvia. Ele se aproximou dela e repetiu a perg...

Nair.

Ela dirigia uma Spin. O banco bem puxado pra frente, pra alcançar pedais e volante. Tinha um celular Android e o aplicativo da 99Taxi. Chamava voucher de "vaut" e tinha um anel no dedo anelar da mão direita - não sei dizer se era uma aliança, nunca fui boa em diferenciar isso. Sua pele era escura e suas mãos, pequenas. Seu cabelo ia curto, até um pouco rente à cabeça, e seus olhos eram jabuticabas, mas daquelas que ainda não adoçaram. Não confiava no GPS, mas tinha São Paulo na palma da mão. Não puxou muita conversa, mas também não ficou muito calada. Nos levou daqui até ali, reconhecendo cada rua, até mesmo aquela tal Relíquia. Queria saber onde mora Nair. Queria saber se tem filhos, se gosta de tomar café ou que cor acha que vai bem com sua pele. Gosto de imaginar, contudo, que chega sempre em casa tarde da noite, porque dirige um táxi de madrugada, que seus dois filhos, Bruno e Débora, deixam sua janta pronta no micro-ondas, e que a foto do pai deles ...

6.

6 meses. Exatos 6 meses desde minha última postagem por aqui. Exatamente hoje, 6 meses. Metade de um ano que passei sem escrever um pio. Me ocupando com outras atividades, fingindo ser eu mesma em outras coisas, quando tudo que realmente me é bom é a pena tecla. Trago-me de volta aqui, na esperança de mais um suspiro de literatura para meus dias. Quem sabe... É, quem sabe eu volte a me virar do avesso por aqui. E espero que não leve mais 6 meses.

Pequenino.

Ele foi chegando de mansinho, com uma corrida que quase não passava de uma caminhada, com os bracinhos dobrados à altura do tórax. Era pequeno, mal devia me alcançar a cintura. Tinha o cabelo raspado rente à cabeça. A pele beirava o tom daqueles chocolates bem doces. E os olhos... Os olhos eram do tamanho de duas ameixas, escuros iguais, mas reluzentes como as estrelas que começavam a dividir o céu com o Sol que já se ia. O menino corria à frente dos pais, que andavam com mais calma, conversando sobre algum assunto leve. Eu, assim como eles, caminhava, mas com a mochila nas costas e talvez uma cara não tão aberta, porque o pequeno me olhava meio desconfiado. Me olhava com aquele jeito de criança que espera ser repreendido pelo adulto mais próximos. O miúdo jogging dele quase não alcançava minhas passadas normais. Ele me olhava de baixo pra cima, desconfiado. Eu o olhava de cima pra baixo, sisuda. Os olhos dele brilharam. Os meus reluziram de volta. Abri um sorriso. Ele se es...

T

Como um travesseiro depois da soneca, ela era macia. Era macia e doce. E pequena. Seu corpo, com ossos de passarinho, se encaixava perfeitamente no meu abraço. Tinha os pulsos finos e as mãos pequenas. Uma delicadeza de bailarina. Mas não era nem de longe fraca, como se podia ver pelos cabelos grossos, curtos e resistentes. Resistiam. A franja, teimosa, às vezes lhe cobriam os olhos que podiam parecer doces demais, mas quando os deixava à mostra... Ah, que deleite! Eram verdes, compreensivos, determinados e por vezes até melancólico. Eles falavam baixo, mas falavam firme. Com poucas consoantes, todavia. Ela era fluida, sem movimentos bruscos ou que interrompessem seu caminho natural. Talvez por isso fosse tão boa dançarina. E também atriz. E também mulher. E menina. Me era inevitável chamá-la de "pequena". Porque a mim, me parecia tão minha. Apesar de ver nela contida sua total liberdade. Todavia... É, era um pouco minha. E eu, talvez soubesse, bastante dela. De ...

R.

Ela era morena. E comprida. Tão comprida quanto eu, mas se dobrava com muito mais facilidade. Sentava ali do meu lado, assistindo a aquele filme comigo, como se fosse uma pessoa qualquer. Como se não tivesse saído da minha própria imaginação. Tinha os cabelos lisos num coque, e os olhos ansiosos detrás de um par de óculos. Os braços e as pernas eram longos, muito longos. Claro, eu os desenhei assim para que pudessem me resgatar mesmo do mais profundo poço. Tinha um sorriso largo e rasgado, que não tardava em aparecer para me confortar. Eu ficava esperando minha irmã - esta, sim, real - a meu lado esquerdo, a qualquer momento me pedir para parar de fantasiar e inventar amigos imaginários, e parar de falar com eles. Mas aquilo seria tão difícil... Porque aquela que eu havia criado parecia tão real. Ela andava, falava e me compreendia como ninguém. Bom, talvez pelo fato de que compartilhássemos da mesma mente, mas isso já não vem ao caso. Meu coração, contudo, era só dela. Natá...

Resgate

O semáforo abriu e eu segui em frente, acelerando para o início do viaduto. Foi quando vi, a meu lado esquerdo, parado no acostamento daquela pista, um homem. Ele tinha a pele cor de cansaço, mas os cabelos ainda mantinham um tom de vivacidade. Vestia calças rasgadas e nada calçava. O que me chamou a atenção, todavia, foi o que ele tinha nos braços: um pequeno gato, mesclado e bastante assustado. O homem olhava de volta para o outro lado da via, onde alguém o devia esperar. A ele e ao gato. Ele segurava aquele felino com tanta afeição. Eu quase conseguia ouvir o filhote ronronando em gratidão. Tinha uma outra coisa também... Não era só o filhote que se agarrava ao homem. O homem também se agarrava àquela bolinha de pelos. Quase pude ver, ali, naquele cenário de cimento, o amor que o homem passava para o pequeno bicho. E também a esperança que o gato passava para aquela criança crescida. Natália Albertini.

Ninho.

Água. Tinha água batendo no vidro da janela sem cortinas. Demorei a perceber que o barulho era real. Franzi o cenho e me espreguicei, custando a deixar pra trás o sonho cinzento que me envolvia. Estiquei o pescoço e olhei para os vidros agora camuflados de gotas d'água. A chuva caía grossa, tão silenciosa quanto podia ser numa manhã de domingo. O céu era cinza, tão nublado quanto a atmosfera onírica que teimava em não me largar. Quase hora de ir embora , pensei, mas logo me encolhi de novo. A cama que me acolhia era velha conhecida minha. E aqueles braços também. Aquele peito largo, destemido e quente que agora me servia de travesseiro respirava com tranquilidade. Subia e descia emanando uma paz amarelo claro. Ronronava também. Ali, escondida naquele ninho macio que eu ousava, por vezes, clamar só meu, o barulho da chuva parecia oco. Eu já não ouvia tão bem as gotas se atirando contra as janelas e escorrendo dramaticamente. Ali eu só ouvia o ar entrando e saindo, e uma bat...