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Mostrando postagens de 2014

R.

Ela era morena. E comprida. Tão comprida quanto eu, mas se dobrava com muito mais facilidade. Sentava ali do meu lado, assistindo a aquele filme comigo, como se fosse uma pessoa qualquer. Como se não tivesse saído da minha própria imaginação. Tinha os cabelos lisos num coque, e os olhos ansiosos detrás de um par de óculos. Os braços e as pernas eram longos, muito longos. Claro, eu os desenhei assim para que pudessem me resgatar mesmo do mais profundo poço. Tinha um sorriso largo e rasgado, que não tardava em aparecer para me confortar. Eu ficava esperando minha irmã - esta, sim, real - a meu lado esquerdo, a qualquer momento me pedir para parar de fantasiar e inventar amigos imaginários, e parar de falar com eles. Mas aquilo seria tão difícil... Porque aquela que eu havia criado parecia tão real. Ela andava, falava e me compreendia como ninguém. Bom, talvez pelo fato de que compartilhássemos da mesma mente, mas isso já não vem ao caso. Meu coração, contudo, era só dela. Natá

Resgate

O semáforo abriu e eu segui em frente, acelerando para o início do viaduto. Foi quando vi, a meu lado esquerdo, parado no acostamento daquela pista, um homem. Ele tinha a pele cor de cansaço, mas os cabelos ainda mantinham um tom de vivacidade. Vestia calças rasgadas e nada calçava. O que me chamou a atenção, todavia, foi o que ele tinha nos braços: um pequeno gato, mesclado e bastante assustado. O homem olhava de volta para o outro lado da via, onde alguém o devia esperar. A ele e ao gato. Ele segurava aquele felino com tanta afeição. Eu quase conseguia ouvir o filhote ronronando em gratidão. Tinha uma outra coisa também... Não era só o filhote que se agarrava ao homem. O homem também se agarrava àquela bolinha de pelos. Quase pude ver, ali, naquele cenário de cimento, o amor que o homem passava para o pequeno bicho. E também a esperança que o gato passava para aquela criança crescida. Natália Albertini.

Ninho.

Água. Tinha água batendo no vidro da janela sem cortinas. Demorei a perceber que o barulho era real. Franzi o cenho e me espreguicei, custando a deixar pra trás o sonho cinzento que me envolvia. Estiquei o pescoço e olhei para os vidros agora camuflados de gotas d'água. A chuva caía grossa, tão silenciosa quanto podia ser numa manhã de domingo. O céu era cinza, tão nublado quanto a atmosfera onírica que teimava em não me largar. Quase hora de ir embora , pensei, mas logo me encolhi de novo. A cama que me acolhia era velha conhecida minha. E aqueles braços também. Aquele peito largo, destemido e quente que agora me servia de travesseiro respirava com tranquilidade. Subia e descia emanando uma paz amarelo claro. Ronronava também. Ali, escondida naquele ninho macio que eu ousava, por vezes, clamar só meu, o barulho da chuva parecia oco. Eu já não ouvia tão bem as gotas se atirando contra as janelas e escorrendo dramaticamente. Ali eu só ouvia o ar entrando e saindo, e uma bat

Cafajeste.

Ele se movimentava pela casa naturalmente, enquanto eu ficava ali parada, olhando para aquela vermelhidão por segundos que pareceram eternos. Não podia não sorrir diante daquilo, era inevitável. Vi dois pedaços de fita finos e vermelhos pendurados em algo que saía da parede, não importa. Só me importava olhar aqueles cordoezinhos feitos de bibelô. Uma massa disforme, mas pesada e intransigente me subiu pelo estômago e garganta. Uma massa colorida, de densa felicidade e de uma afeição azul bebê. Respirei fundo e me esforcei para empurrá-la pra baixo, mas ela insistia. Me fazia abrir ainda mais o sorriso. Ainda meio sem chão, só consegui emitir algumas palavras: - Você guardou as fitinhas... Aquelas que um dia selaram minhas tranças. Displicente, não prestei muita atenção à resposta dele, mas acho que ele disse que sim, as havia guardado. Ele agora prostrava-se próximo a mim, e o cheiro dele me enchia o peito. Baixei os olhos e inspirei profundamente mais uma vez. Não consegui

Smile, Sunshine.

Haviam duas camas, mas eles se espremiam numa só. A noite tinha sido turbulenta, mas o Sol os poupou, invadindo o quarto pela sacada com uma luz mais fraca que o habitual. Ela abriu os olhos de leve e checou seu travesseiro: um braço forte, tatuado e muito aconchegante. Ela se empurrou um pouco pra trás, se encaixando melhor no corpo atrás do seu, que reagiu abraçando-a mais forte. Era um corpo grande, quente, e tinha um cheiro que ela reconhecia de muito longe. Aos poucos, ele também despertou. Apertou-a nos braços e beijou-lhe a nuca, enroscando suas pernas na dela. Sua mão, pesada, se precipitou por dentro da blusa dela, a única peça que aquele corpo menos quente vestia, acariciando suas costelas e peitos. Depois, desceu novamente, encontrando seu umbigo e, então, o quadril exposto e branco. E então, sim, um pouco mais pra baixo e... Ela se contorceu e gemeu baixo, abrindo o primeiro sorriso da manhã. Foi então sua vez de usar as mãos e fazê-lo sorrir. Por debaixo do cobe

Marshmallow

O dia era bastante frio pra uma manhã de maio. Uma chuva fina e insistente batia nos vidros do carro, como se um domingo já não fosse tedioso por si só. Todavia, aquela domingo não ia tão monótono assim... Ele dirigia e defendia suas opiniões com afinco dentro daquele casaco grande de náilon. Seu tom de voz era amadeirado, melodioso aos ouvidos dela, que prestava bastante atenção no que ele dizia. Prestava mais atenção, com tudo, no jeito como ele falava. E em como ele ficava bem de barba. Não conseguiu se conter e, por algumas vezes, arrumou um ou outro fio que destoava. Debaixo do queixo dele, ou mais perto da orelha, quase à altura dos óculos, onde aquela barba densa se juntava com o cabelo que ele agora tanto aprovava. Barba e cabelo, ambos do mesmo tom, mas os olhos... Ah, os olhos, não... Estes tinham uma cor ainda mais doce, quase caramelo. E ela realmente gostava de como esse caramelo escorria por sua pele quando ele a encarava. Ela sorria bastante e concordava com quase

Madeira.

Ele parou, de joelhos, por cima dela, com o tronco erguido. O pescoço e os ombros eram como rocha esculpida. Amadeirados. O peito largo e questionador arfava. Seu rosto ia limpo, com sentimentos distintos e indefiníveis à mostra. Naqueles míseros segundos, o quarto silenciou. A penumbra encobria os móveis, mas havia certa luz argêntea. As paredes tinham a tinta cinzenta descascada, a cama, os lençóis revirados, e o chão, as roupas. Ele inspirou profundamente outra vez, olhando aquela criatura debaixo de si, com os cabelos estendidos e a pele em chamas. Os olhos vermelhos dela não se desgrudavam dele em nenhum momento. Dos seus cílios, do seu maxilar e dos seus braços. Os sete segundos passados foram o suficiente para ele registrar aquela cena quase notívaga. E então, ele avançou. Enquanto ele lhe rasgava o pescoço e o baixo ventre, fazendo jorrar o visco rubro, num completo frenesi, afogando-a com aquele cheiro sobrehumano e hipnótico, a cabeça dela pendia solta para fora

Untitled.

Eis que aos 21 anos de idade, me sinto nostálgica as fuck. Revirei meu blog nessa última hr e achei tanto texto, tanto sentimento, tanta gente, tanto eu que deixei pra trás... E pelo simples fato de crescer, de mudar de fase, de o tempo ser inconstante. Escrever esses dois primeiros parágrafos já são o suficiente para me causar náuseas, dores agudas no peito e uma incrível bola de lágrimas na garganta. Acho que por isso agora minha ausência desse blog é sempre tão mais espaçada. Acho que me tornei menos humana, e mil vezes mais covarde. Sinto muita falta de escrever, mas escrever como escrevo implica em vomitar meus sentimentos em palavras, e isso sempre vem com uma dor incrível, é um peso quase que insustentável, e talvez por isso eu o tenha evitado tanto. Meu Deus, eu já deixei tanta gente pra trás... Isso me dói. Uns de propósito, mas a maioria, não. Sou grata por sempre ter escrito pelo que estava passando, porque, hoje, quando releio meus textos, do ano passado ou de 2008,

Let There Be Rock!

Eu tinha dezesseis anos, muito AC/DC na cabeça e pouco dinheiro no bolso, mas os caras iam vir pra cá. A porra da minha banda favorita ia se apresentar aqui em São Paulo, no Morumbi, eu TINHA que ir. Na época eu dava umas aulas de inglês, juntei alguns pagamentos consecutivos e esperei abrirem as vendas. O dia que fizeram isso foi uma sexta-feira, eu estava no colégio e ia pro ponto de venda depois da aula, mas quando eram mais ou menos umas dez da manhã, alguém (não me lembro muito bem, isso já tem quatro anos) me avisou que a fila já era imensa, e corríamos o risco de não conseguir. De alguma forma, eu convenci minha mãe a me tirar da escola naquele momento, sabendo que ia perder as demais aulas (sempre fui "nerd" nesse sentido, não cabulava aula, nem nada), e me levar pra lá. Fiquei na fila com um amigo meu por algumas horas, até que chegamos no balcão de venda e compramos. Meu ingresso dourado. Compramos o ingresso pra ver o AC/DC tocar. A espera daquele dia até o