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Desabrotar

A lua brilha tão alta hoje. Andando sem pressa pra um destino que não importa, o cheiro da noite azul me levantou os olhos pra lua. Foi como se ela não admitisse que eu não a fitasse. Caminhei alguns passos sem tirar os olhos dela. Dela e do céu, que hoje tem uma cor diferente. Ten camadas de azul marinho, mas também camadas de lilás e outras de azul turquesa, o que faz com que as pouquíssimas estrelas e a lua se sobressaltem ainda mais. Ainda há vento, mas ele não é mais tão gelado. Ainda há escuro, mas ele não é mais impenetrável. Ainda há inverno pra trás de mim, mas pra frente, ouço os ecos de um verão que se aproxima. Ouço o sol quente me tocando a pele e sinto o cheiro dos dias longos que estão por vir. Passamos! Passamos pelo inverno, e agora essa lua nos traz a maré de tudo que há de bom por vir. Passamos. Passou. Deixo a leve brisa me envolver nessa antecipação que é ainda tão efêmera, mas já doce. Doce como a flor que vejo despontando logo ali, branca como a lua.

Flutuando

Tem um lugar dentro de mim onde guardo muitas coisas. Eu quase nunca vou lá.  É um lugar com uma luz baixa azulada, e bem empoeirado. Às vezes tem um som quieto, que me lembra Sigur Rós, mas na maioria das vezes, é apenas silêncio com alguns ecos de vozes que quase soam conhecidas. Não é como se eu não gostasse de lá, porque ele também é meu, e as coisas que guardo lá, eu... Eu as amo muito. De alguma forma, elas são algumas das minhas coisas mais preciosas. É só que... é difícil de achar o caminho de lá e mais difícil ainda achar o caminho de volta. Esse quarto, cômodo, canto, esse lugar que não tem nome tem as paredes da casa do vô Germano e também as camas do quarto dos meus tios com cheiro de roupa lavada, mas também tem o quintal da casa de Pérola, com uma mangueira enorme, e a sombra de um gato rajado. Tem o canto da sala onde me encolhi e chorei quando pedi pra levarem um brinquedo de papel que eu fiz especialmente pra vó Elza, e me disseram que ela não podia mais recebê-lo....

Ecos

Quando eu o vi, eu não sabia. Eu não sabia. Não tinha como saber - eu nem o conhecia. Também se conhecesse, não sei dizer se o haveria reconhecido. A escuridão era rasgada por raios roxos, verdes e vermelhos intermitentes, acompanhando sons profundos e graves que vinham do palco. A música que vinha de lá não era muito inteligível, mas o modo como Alma mesclava a guitarra e vocais aéreos com ecos e algum teclado tornava tudo um pouco onírico. As cordas da guitarra rebombavam nas caixas de som e faziam meu peito afundar. Foi ali, recostada a uma parede bem ao fundo, que o vi. Ele era baixo. Tinha a cabeça recém-raspada, orelhas meio protuberantes e ombros tensos. Eu não sabia o que lhe passava pela cabeça. Ele pediu uma cerveja e se encostou no bar, um pouco à minha frente. Pude ver que ele tinha uma barba rala e bem loira, mal se distinguindo de sua pele tão branca. Tinha um nariz meio comprido e dedos curtos, se agarrando ao copo de pint. Eu sinceramente não sabia que ele se sentia daq...

O abraço.

  Uma nuvem pairava ao longe. Ela caminhava devagar pelo céu azul. Até parecia o... É, parecia o chapéu de Lewis. Aquele que ele gostava de usar quando saía pra caminhar pelo parque. Ele dizia que ajudava a se camuflar no meio do bosque, e por isso acabava conseguindo avistar mais pássaros. E como ele amava os pássaros! Desde que eram crianças e fingiam que o jardim da mamãe era uma floresta... James respirou fundo, demorando a se desvencilhar da nuvem e daquelas memórias, mas quando finalmente desviou o olhar, voltou-se para seus velhos dedos enrugados, as unhas amarelas, pendendo do dispenser de moedas do telefone. Era uma sensação engraçada estar ali naquela cabine telefônica. A porta fechada atrás de si abafava todo o som da grande avenida, e o deixava observar. Ele então observava. Segurando o telefone à orelha, ele olhava pelo vidro da cabine. Via muita vida lá fora, e sentia pouca ali dentro. O ar era parado e pesado. Seus pulmões demoravam a se encher, parecia. Havia um che...

Só.

  - E você, pequena? Que quer ser quando crescer? Primeiro, ela olhou para mamãe, que estava conversando com a tia Ju mais ao longe. Depois, olhou ao redor, observando vovô e vovó num canto, papai no outro, e ouvindo as vozes do resto da família animadas mais ao longe, na cozinha. Então voltou para quem lhe havia feito a pergunta e respondeu, certeira: - Só. Quero ser só.

Nº 12.

  O Sol já ia se pondo quando Rafaella deu tchau para os hóspedes. Eram em três: um casal e um amigo. Todos muito simpáticos. Deram tchau mais de uma vez, acenando de longe, e se encaminharam para a avenida principal. Ela então se virou e caminhou de volta para o prédio. Subiu as escadas sem pressa, brincando com as chaves na mão. É, eles foram hóspedes bem agradáveis. Como será que era a vida deles longe dali? Será que eles eram sempre felizes daquele jeito? Eles pareciam tão jovens, alegres, cheios de vida e... Abriu a porta pesada de madeira. Andou pelo apartamento, ajeitando coisa e outra. Empurrando uma cadeira aqui, fechando uma janela ali. Não precisava fazer muito porque em breve Tatiana viria ajudá-la com a faxina. Antes de fechar a janela da sacada, ela se permitir sentar ali, apreciando a vista. Conseguia ver uma nesguinha do mar ao longe. Apoiou os braços na cabeça e esticou as pernas, respirando devagar. Era uma sensação boa sentir a maresia lhe beijar a pele assim. Fi...

Um café amargo

     Tomava meu café e, para matar alguns minutos que tinha livres, rolava meu Instagram devagar, lendo algumas postagens e ignorando outras.      Ultimamente, criei o hábito de, a cada foto que vejo, me perguntar se de fato conheço aquela pessoa e se faz alguma diferença saber o que passa em sua vida. Se a resposta é sim, deixo-a ali, até que me questione em algum  outro momento. Se a resposta é não, vou até seu perfil e não só paro de seguir-lhe como a removo dos meus seguidores.     Normalmente, é um processo indolor, porque as respostas costumam ser bem simple: sim ou não.     Contudo, nessa manhã, vi uma foto de Angélica.     Era seu aniversário. A foto a mostrava muito feliz e toda sorrisos,  cantando parabéns atrás de um bolo elaborado. A legenda era um tanto clichê (mas quem de nós é que não é?) e os comentários me pareciam vazios.     Ela fazia 34 anos. Agora tinha o cabelo um pouco mais curto, mas ...