As águas de Nina

Hoje era o primeiro dia de Nina de volta à escola.
Os últimos meses tinham sido obscuros. Ela se perdeu durante um bom tempo. Nem seus pais, nem sua irmã e nem mesmo Edu conseguiram fazê-la “voltar ao normal”.

Ela estacionou atrás da escola, como fazia há tantos anos. Desligou o carro e ficou ali por alguns momentos, respirando fundo.
Encarou seus próprios olhos pelo retrovisor. Viu suas olheiras, roxas, e sua testa agora cheia de rugas. Sua pele parecia viscosa. O choro lhe escalou a garganta, e seus olhos encheram. Ela os segurou.
Pegou o celular e ligou para Edu.
     - Oi, amor - ele atendeu rápido.
Silêncio do lado dela. O som dela engolindo em seco.
Ele respirou fundo do outro lado da linha:
     - Vai ficar tudo bem. Vamos, você mesmo disse que isso ia te fazer bem. Não tem saudades deles?
     - Tenho… - trêmula
     - Então! - paciente - Tente. Tente só por hoje. Assim que tiver o intervalo,  me ligue e me conte como as primeiras horas foram. Eu estou aqui pra você, tá bem?
     - Eu sei - bem baixo.
     - Eu te amo.
Ela respirou fundo e deixou escapar algumas lágrimas.
     - Eu também, Du.
Desligaram.
Ela terminou de ajeitar as coisas na bolsa e, enquanto trancava a porta, olhou pela janela do banco de trás. Viu, jogado no chão do carro, meio escondida debaixo de um dos bancos, a alça da bolsa de maternidade.
Congelou por alguns minutos, sentiu o choro voltando.
Seus olhos se encheram com as cenas daquela quarta-feira. Via muito sangue na cama. Se ouvia gritando e chacoalhando Edu.
O choro agora mais forte, lhe fechando a garganta, mas dessa vez suas pernas foram mais rápidas: a tiraram dali. Mal notou quando já estava quase na porta da escola.
Parou por mais alguns segundos. Fechou os olhos e pensou somente em Edu. Em seus pais e em sua irmã. Inspirou fundo. Expirou, começando a ouvir o barulho das crianças lá dentro.

     - Nina! - uma mão a seu ombro. Era Renata, a diretora da escola - Nina, Nina! - e a abraçou com muita força.
Nina retribuiu o abraço.
     - Ah, meu Deus! - Renata a soltou só o suficiente para a olhar nos olhos, lhe desejando boas vindas com um sorriso enorme - e logo a abraçou de novo.
Nina não falou, mas quase sorriu.
     - Vem! Estamos em cima da hora!
Renata a puxou pela mão. Nina seguiu, sem muita reação.
Quando alcançaram a sala dos professores e Renata escancarou a porta, um forte rugido de um grupo gritando em conjunto:
     - Surpresa!!!
Nina ficou muda. Só conseguia admirar aquelas pessoas todas olhando para ela. A sala toda enfeitada com balões, uma faixa amadora que dizia “Bem vinda de volta, Nina!”, cheia de mãozinhas pequeninas marcadas com tinta - as mãozinhas das crianças, e um monte de desenhos. Tinha café, bolo e suco.
Nina foi levada de abraço em abraço, sem tempo para sentir qualquer outra coisa que não alívio. Sentia a brisa de felicidade soprando de longe.
Aquele era um dos primeiros momentos, em meses, em que sentia algo além de dor.
Vinte minutos passaram voando. A sala era uma bagunça só.
Muitos rostos conhecidos a abraçavam, beijavam, diziam o quanto sentiram sua falta, mas nenhum deles, nenhum, perguntava sobre o incidente. E Nina não poderia estar mais aliviada por isso. Até esboçava um sorriso aqui e ali - era estranho, quase havia esquecido como fazer.
Pela primeira vez, via cores além do eterno cinza. Ainda eram pastéis, mas não eram cinza.
Quando o sinal tocou, Renata novamente puxou Nina pela mão e a levou até a sua sala de aula.
Tudo parecia ainda um sonho.
Sua mente a fez tentar pensar que na verdade era um sonho, e que ela ia acordar com a cama encharcada de sangue de novo, mas… Não. Ela impediu.
Por fim, Renata abriu a porta e a empurrou para dentro da sala.
Embora Nina agora fosse diferente - se via bem mais velha e cansada - aquilo não importou. Não impediu que a maré de pequenas mãozinhas viessem tocá-la de uma vez.
Era um mar de vozinhas gritando “Tia Nina, Tia Nina!”. Eles se empurravam para abraçá-la. Grudavam nas pernas dela. Puxavam sua roupa. Subiam nas pequenas cadeiras para chegarem mais perto dela. Eram quase agressivos de tanto que gritavam, e pulavam, e agarravam.
Ela abriu os braços e se deixou cobrir por completo daquelas mãozinhas.
Elas a resgatavam.
Puxavam-na para a superfície. Seguravam-na pelas roupas e cabelo e batiam suas perninhas em direção à superfície daquelas águas tão escuras e frias, nadando para cima - “vem, Tia Nina! Tia Nina!”.
Nina olhou pra cima e viu, pela primeira vez em um longo tempo, a claridade através da água.
Ela sorriu.

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