Atrasada

O dia amanhecia devagar, ainda preguiçoso.
Nenhuma nuvem, mas também nenhum Sol no céu por enquanto.
O dia ia acordando vagaroso, e a cada bocejo, trazia um pouco mais de movimento ao hotel.
Os recepcionistas aos poucos trocavam de lugar: os da manhã começando seu turno e os da noite, indo descansar.
Eram 5:30am. Até os passarinhos ainda acordavam aos poucos, sonolentos, mas não Vivi, que já estava pronta para seu longo dia de trabalho.

O único ambiente movimentado àquela hora era o restaurante, onde ela tomava seu café preto com um pão na chapa. Ali já tinha gente indo e vindo, pra lá e pra cá, arrumando as mesas e preparando o buffet.
Vivi tomava seu café com certa pressa, de vez em quando acenando para seus colegas do hotel - ou melhor, resort (“rí-sór-chy”,  como Vivi tentava ensinar sua mãe a falar), e sempre olhando no relógio. Era o relógio de sua mãe. Nunca o tirava do pulso.
- Não importa a hora que o relógio estiver marcando,  estarei pensando em você, minha filha - a mãe lhe disse antes de Vivi se mudar para o hotel.
Meu Deus, aquilo já fazia uns bons 10 anos, pois agora ela mesma já tinha quase 40.
Sentia falta de sua mãe constantemente, mas infelizmente a via muito pouco - uma vez a cada dois anos mais ou menos. O salário do hotel não permitia que ela mantivesse a si mesma e à mãe e ainda por cima viajasse mais do que isso.
Afastou as saudades e olhou pela janela, admirando as árvores enquanto mastigava.

O resort ficava numa parte tanto quanto distante do país - Goiás, mas contava com uma beleza natural incomparável.
O clima ali era bem seco e muito ensolarado, e o resort era rodeado por uma floresta tropical. Não era incomum os funcionários encontrarem tucanos, preguiças, cobras e, se com sorte, um lobo-guará, mas a floresta normalmente os deixava em paz, desde que o favor fosse retribuído.
Isso nem sempre acontecia, claro, ainda mais com tanto hóspede. Eles de vez em quando irritavam os bichos.
Vivi abriu um sorriso pensando nisso. Lembrou do Fábio, seu amigo do hotel, que trabalhava como monitor para as crianças, contando sobre um moleque mimado que viu um tucano uma vez, tentou chegar perto demais pra tirar uma selfie (“‘céu-fi’, mãe!”), mas acabou é levando várias bicadas do bicho. 
Fábio era engraçado. Ela sentia saudades dele. Eles eram da mesma cidade no Pará, então sempre se pegavam falando sobre as mesmas coisas ou até as mesmas pessoas. Ele havia se demitido do hotel e voltado para a casa de sua mãe. 
- Não aguento mais isso, não, Vivi. Ficar aqui cuidando de filho dos outros enquanto toda a minha família fica lá, morrendo de saudade e fome. - ele disse para Vivi um pouco antes de ir.
- E que trabalho tu vai achar lá, homem?
- E eu sei? Só sei que eles precisam de mim lá e vou dar um jeito - era seu plano.
Antes de Fábio ir, Vivi deu a ele um pequeno embrulho (era um kit do hotel, com touca, sabonete, shampoo e um creme de pele que a Vera, sua colega de quarto, vendia daqueles catálogos) e pediu que ele entregasse a sua mãe. 
O correio ficava longe do hotel e ela raramente conseguia tempo suficiente para ir até lá.
Tentou pensar em quando foi a última vez em que respondeu a uma das cartas de sua mãe - ela não entendia direito tudo isso de tecnologia, então não tinha um celular, gostava mesmo era de cartas - mas parecia longe demais. Na verdade, fazia tempo que não recebia cartas delas. Por isso pediu a Fábio, há uma semana atrás, que ele passasse por lá, pra ver se sua mãe precisava de algo.
A saúde dela não era mais a mesma tinha alguns anos, mas… ah - 10 pras 6!

Como fazia todos os dias depois do café, ela correu de volta a seu quarto, escovou os dentes, fez um coque alto com os longos e espessos cabelos negros, vestiu o avental e se olhou no espelho mais uma vez (sorria!). 
Antes de sair do quarto, checou rapidamente o celular e viu uma mensagem de Fábio da noite passada. Seu coração pulou uma batida. Precisava saber o que era! Mas, arre… ele mandou foi uma mensagem de áudio de mais de 2min e - são 6 da manhã!
“Não deve ser nada”, escondendo o celular no bolso do avental enquanto corria para a recepção.
- Você tá atrasada, menina! - foi o bom dia de Gabriela. Eram 6:02am.
- Eu sei, eu sei!

Se apressou em descer as rampas em direção às piscinas, empurrando o pesado carrinho cheio de toalhas limpas.
Ela começava sempre pelas piscinas menores, que eram as mais quentes - ah, sim, não eram simples piscinas, eram piscinas de águas termais - e depois ia devagar descendo para as outras.
Ela parava de piscina em piscina, estacionava o carrinho e então, metodicamente, separava toalhas suficientes para as espreguiçadeiras dali. Fazia rolinhos com cada uma delas e deixava uma sob cada cadeira. Então, partia para a próxima.
Essa era a primeira de suas tarefas diárias, mas tomava boa parte do tempo.
Quando chegava nas piscinas maiores, que eram as favoritas dos hóspedes, pois é onde eles faziam aulas de dança e atividades com as crianças, além de ter o maior dos bares, a manhã já ia mais alta e o Sol começava a aparecer.

Vivi enrolava as toalhas com afinco, se hipnotizando a cada dobra, para evitar pensar na mensagem de Fábio, mas quando chegou na piscina do chafariz, que ficava lá embaixo, depois de todas as outras, não conseguiu mais.
Em toda a imensidão do resort, esse era o seu lugar favorito.
Ali, os passarinhos cantavam baixo, e a floresta sussurrava. Havia um cheiro de pinho, que vinha do steam room (“mas pode chamar de sauna também, mãe” elas riam juntas toda vez), e um murmúrio que vinha da água que ondulava delicada.
Ela olhou em volta, mas os outros funcionários estavam ainda nas outras piscinas, não havia ninguém por ali além dela. Só ela e a calma floresta amanhecendo.

Então, Vivi fez o que nunca havia feito antes: sentou numa das espreguiçadeiras.
Esticou as pernas e olhou no gasto e velho relógio - 8:07am.
Ela olhou para o céu por alguns segundos, agora já mais claro. Ouviu somente sua própria respiração por alguns segundos, sentindo aquele cheiro de pinho, até que alguns passarinhos a chamaram de volta ao mundo real.

Ela então apertou o maxilar e pegou o celular, segurando-o com força.
Finalmente, Vivi deu play na mensagem e colocou o celular ao ouvido.
A mensagem pareceu durar horas.

Quando terminou de ouvir, com o peito fundo, e deixou o celular cair no chão de pedra, não sabia mais dizer se ainda estava atrasada. 
Seu relógio parara.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Punhal.

Os Três T's

Uivos.