Arrancado
- Peraí, antes de desligar, vou chamar seu pai pra te dar um oi!
- Ah, não, mãe! - ele falou apressado, revirando os olhos - Não precisa! - mas ela já tinha saído da frente da câmera, ele agora só via o sofá e aquele quadro da sala da casa deles.
Aquele quadro sempre o deixou aflito. Era abstrato, mas Victor sempre parecia enxergar um único olho, seco, o encarando friamente.
Ele odiava ter que ligar pra sua mãe toda semana, mas era a condição que ela lhe havia imposto: todo domingo, às 13h, se ligariam pra “enganar a distância”, ela dizia.
Ele havia finalmente se mudado da casa de seus pais. Vivia agora numa outra cidade, num outro estado, a muitos quilômetros de distância. Morava num apartamento pequeno. Tinha um quarto só seu, mas dividia a casa com outros dois garotos.
Sua mãe não amava essa situação nova, mas a condição da videochamada semanal a deixava mais tranquila. E por mais que Victor odiasse isso… Ele a amava muito, mais do que tudo e todos, então aturava por ela.
Ele enrolava os cabelos da nuca com força, quase os arrancando, enquanto pensava nisso tudo, quando a ouviu voltando para perto do computador. Inconscientemente arrumou as costas e colocou as mãos debaixo das pernas, sentando sobre elas, esperando nervoso seu pai aparecer na frente da câmera.
- Peraí, antes de desligar, vou chamar seu pai pra te dar um oi!
Ela pulou do sofá e deixou o computador ali. Sabia que se demorasse um segundo a mais, Victor ia dar um jeito de dar tchau correndo e desligar antes dela conseguir buscar Jeff.
- Jeff? - ela chamou ao pé da escada - Vem falar oi pro Victor!
Ela ouviu Victor reclamando pelo computador:
- Ah, não, mãe! Não precisa!
Ah, mas precisava. Precisava, sim.
Desde que ele se mudara, os dois só haviam se falado duas ou três vezes, embora ela ligasse para Victor todas as semanas. E ele havia mudado já tinha alguns bons meses.
Ela ouviu Jeff se mexendo no andar de cima, devia estar no seu escritório. Ouviu sua respiração pesada, se arrastando para fora do cômodo, tentando burlar aquele momento tanto quanto o próprio Victor.
Seu coração pesava ao pensar em como os dois se tratavam. Foi depois daquela viagem. Tudo mudou depois daquela viagem, mas ela não sabia por quê. Sinceramente, não conseguia pensar nisso por muito tempo. Doía demais.
Jeff enfim apareceu ao topo da escada e começou a descer, arrastando os pés.
- Vem logo, anda! - ela o apressou
Ele respirou fundo de novo, sério, a encarando friamente. Quase tão frio quanto o olho do quadro da sala.
Assim que ele desceu o último degrau, ela o pegou pelo pulso e o puxou para o sofá. Ela pegou o computador de novo e colocou sobre o colo, ajustando a câmera para mostrar os dois.
Silêncio.
- Vi, sua imagem congelou!
Silêncio.
- Não, mãe, não congelou. - ele só não conseguia se mexer.
As mãos começavam a adormecer sob suas pernas. Ficava um pouco mais difícil respirar. A garganta parecia completamente fechada.
- Belo boné - Jeff disse, ríspido, sentado tão duro e desconfortável quanto o próprio filho, do outro lado da ligação.
Victor não respondeu. Sentiu um gosto amargo na boca: ódio. Engoliu em seco. Toda vez seu pai falava do boné. Toda vez. Ele odiava que Victor usasse bonés.
- Conta pro seu pai da viagem, filho! - era a quinta vez que os garotos do apartamento faziam essa viagem para a praia próxima, e dessa vez Victor havia aceitado. Não sabia muito bem por quê, mas aceitara.
- Ah… é. Semana que vem.
- Ele vai à praia, Jeff! - tentando fazer aquele momento um pouco menos estranho.
- Hm. Entendi. - esse era o máximo que ele falaria provavelmente.
Mais alguns segundos de silêncio. Os dois sem olhar diretamente para a tela. Sem se olharem.
As mãos de Victor agora já adormecidas. Jeff com as costas duras, impassível, sentado reto, quebrou o silêncio
- Já passam das cinco aqui. Preciso ir. - e levantou, sem dizer adeus.
- Ah… - ela tentou dizer algo. Victor conseguia ver sua mãe segurando as lágrimas, angustiada.
- Tá bem, mãe, preciso ir também. Nos falamos semana que vem.
- Ah… - ainda segurando a tristeza na garganta - Tá bem, filho… Até semana que vem.
Clique. Desligaram.
Victor fechou o notebook e se olhou no espelho que ficava ao lado da mesa. Respirou fundo e finalmente tirou as mãos de debaixo das pernas, sentindo o sangue aos poucos voltar a circular.
Não conseguia parar de se encarar. Via o que seu pai via, e nunca conseguia parar de ver seu pai.
Quando as mãos finalmente responderam, ele tirou o boné surrado e mais uma vez viu o cabelo falhado, sua cabeça machucada, cheia de arranhões e pontinhos de sangue.
Ele levantou as mãos, enfiou os dedos no cabelo já tão ralo e arrancou mais um punhado enquanto lágrimas geladas e silenciosas lhe escorriam pelo rosto.
- Ah, não, mãe! - ele falou apressado, revirando os olhos - Não precisa! - mas ela já tinha saído da frente da câmera, ele agora só via o sofá e aquele quadro da sala da casa deles.
Aquele quadro sempre o deixou aflito. Era abstrato, mas Victor sempre parecia enxergar um único olho, seco, o encarando friamente.
Ele odiava ter que ligar pra sua mãe toda semana, mas era a condição que ela lhe havia imposto: todo domingo, às 13h, se ligariam pra “enganar a distância”, ela dizia.
Ele havia finalmente se mudado da casa de seus pais. Vivia agora numa outra cidade, num outro estado, a muitos quilômetros de distância. Morava num apartamento pequeno. Tinha um quarto só seu, mas dividia a casa com outros dois garotos.
Sua mãe não amava essa situação nova, mas a condição da videochamada semanal a deixava mais tranquila. E por mais que Victor odiasse isso… Ele a amava muito, mais do que tudo e todos, então aturava por ela.
Ele enrolava os cabelos da nuca com força, quase os arrancando, enquanto pensava nisso tudo, quando a ouviu voltando para perto do computador. Inconscientemente arrumou as costas e colocou as mãos debaixo das pernas, sentando sobre elas, esperando nervoso seu pai aparecer na frente da câmera.
- Peraí, antes de desligar, vou chamar seu pai pra te dar um oi!
Ela pulou do sofá e deixou o computador ali. Sabia que se demorasse um segundo a mais, Victor ia dar um jeito de dar tchau correndo e desligar antes dela conseguir buscar Jeff.
- Jeff? - ela chamou ao pé da escada - Vem falar oi pro Victor!
Ela ouviu Victor reclamando pelo computador:
- Ah, não, mãe! Não precisa!
Ah, mas precisava. Precisava, sim.
Desde que ele se mudara, os dois só haviam se falado duas ou três vezes, embora ela ligasse para Victor todas as semanas. E ele havia mudado já tinha alguns bons meses.
Ela ouviu Jeff se mexendo no andar de cima, devia estar no seu escritório. Ouviu sua respiração pesada, se arrastando para fora do cômodo, tentando burlar aquele momento tanto quanto o próprio Victor.
Seu coração pesava ao pensar em como os dois se tratavam. Foi depois daquela viagem. Tudo mudou depois daquela viagem, mas ela não sabia por quê. Sinceramente, não conseguia pensar nisso por muito tempo. Doía demais.
Jeff enfim apareceu ao topo da escada e começou a descer, arrastando os pés.
- Vem logo, anda! - ela o apressou
Ele respirou fundo de novo, sério, a encarando friamente. Quase tão frio quanto o olho do quadro da sala.
Assim que ele desceu o último degrau, ela o pegou pelo pulso e o puxou para o sofá. Ela pegou o computador de novo e colocou sobre o colo, ajustando a câmera para mostrar os dois.
Silêncio.
- Vi, sua imagem congelou!
Silêncio.
- Não, mãe, não congelou. - ele só não conseguia se mexer.
As mãos começavam a adormecer sob suas pernas. Ficava um pouco mais difícil respirar. A garganta parecia completamente fechada.
- Belo boné - Jeff disse, ríspido, sentado tão duro e desconfortável quanto o próprio filho, do outro lado da ligação.
Victor não respondeu. Sentiu um gosto amargo na boca: ódio. Engoliu em seco. Toda vez seu pai falava do boné. Toda vez. Ele odiava que Victor usasse bonés.
- Conta pro seu pai da viagem, filho! - era a quinta vez que os garotos do apartamento faziam essa viagem para a praia próxima, e dessa vez Victor havia aceitado. Não sabia muito bem por quê, mas aceitara.
- Ah… é. Semana que vem.
- Ele vai à praia, Jeff! - tentando fazer aquele momento um pouco menos estranho.
- Hm. Entendi. - esse era o máximo que ele falaria provavelmente.
Mais alguns segundos de silêncio. Os dois sem olhar diretamente para a tela. Sem se olharem.
As mãos de Victor agora já adormecidas. Jeff com as costas duras, impassível, sentado reto, quebrou o silêncio
- Já passam das cinco aqui. Preciso ir. - e levantou, sem dizer adeus.
- Ah… - ela tentou dizer algo. Victor conseguia ver sua mãe segurando as lágrimas, angustiada.
- Tá bem, mãe, preciso ir também. Nos falamos semana que vem.
- Ah… - ainda segurando a tristeza na garganta - Tá bem, filho… Até semana que vem.
Clique. Desligaram.
Victor fechou o notebook e se olhou no espelho que ficava ao lado da mesa. Respirou fundo e finalmente tirou as mãos de debaixo das pernas, sentindo o sangue aos poucos voltar a circular.
Não conseguia parar de se encarar. Via o que seu pai via, e nunca conseguia parar de ver seu pai.
Quando as mãos finalmente responderam, ele tirou o boné surrado e mais uma vez viu o cabelo falhado, sua cabeça machucada, cheia de arranhões e pontinhos de sangue.
Ele levantou as mãos, enfiou os dedos no cabelo já tão ralo e arrancou mais um punhado enquanto lágrimas geladas e silenciosas lhe escorriam pelo rosto.
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