Pamonhas da Rua Miranda.

- Temos cural e pamonha. Pamonha fresquinha, pamonha caseira. É o puro creme do milho verde. Venha prova, minha senhora, é uma delícia.
A voz mecanizada começava a sussurrar: o carro tinha entrado na rua, à altura do número 500. Mas a casa em que estava era a 52, estava longe, embora a falta de movimento dali permitisse que as ondas sonoras alcançassem seus ouvidos.
O peito subia e descia num ritmo descontínuo, irregular. Os cabelos da nuca estavam encharcados. A pele reluzia com o sol que invadia o cômodo pela janela.
Pelo canto do olho conseguia ver o jeans surrado, jogado sobre alguns azulejos manchados. Via também a camisa xadrez rasgada
Deu uma arfada de desprezo e, pigarreando uma ou duas vezes, dirigiu a palavra à coisa que estava estatelada à sua frente:
- É, você me deu um belo dum trabalho... Deveria se orgulhar disso - e sorriu ligeiramente.
A cozinha em que se encontrava era escura. Preferia aqueles tons que sujavam menos para seus ambientes de trabalho prediletos. O balcão estava repleto de facas, colheres, garfos e até algumas xícaras; todos posicionados de acordo com o movimento que o corpo que havia estado ali fizera, empurrando-os irracionalmente.
As persianas, pretas, estavam abertas. Não que pudessem ou precisassem cobrir as janelas, mas além disso, ele gostava da luz solar refletindo nas cores que se contrastavam, tanto no piso quanto nas paredes e também no balcão.
Ele respirou uma vez mais fundo. Foi quando sentiu as costas arderem com os arranhões profundos que tinham lhe tirado bastante pele e material viscoso. Sorriu novamente, como que divertido com aquilo, e prosseguiu o diálogo com a coisa, inanimada por sua vez:
- No fim das contas, não sei porque vocês lutam... Mas eu gosto. É um desafio a mais, não é, boneca? E...ei, olha só! Que trabalho, querida! - e olhou para o que tinha no meio das pernas, ainda á mostra e ereto.
Seus olhos se deleitavam com a imagem do corpo nu e maltratado da mulher que jazia numa poça de sangue. Ela tinha os cabelos grudados no rosto pelo suor, embaraçados, a pele branca, apesar de ter passado todo o verão na praia, se bronzeando. Uma venda nos olhos, as mãos amarradas atrás do corpo e a boca recortada num sorriso de canto sombrio que subia-lhe quase que à orelha esquerda.
Entretido, ele parou de mastigar e cuspiu ao chão o pedaço da bochecha que lhe tinha roubado. Agachou-se ao lado do corpo desfalecido e fez força ao tirar o punhal fincado sob o seio direito, deleitando-se com o barulho que o instrumento fez ao puxar a pele e deixar a última das vinte e oito marcas que havia feito por toda a mulher, incluindo lugares inimagináveis.
Jogou a adaga de lado e, satisfeito consigo mesmo, tornou a ficar de pé, vestindo a calça jeans.
- Temos cural e pamonha. Pamonha fresquinha, pamonha caseira. É o puro creme do milho verde. Venha prova, minha senhora, é uma delícia. - a voz vinha de muito perto, o carro estava próximo.
Mesmo assim, ele não se preocupou, continuou a fechar seu zíper tranquilamente. Depois se abaixou e pegou o corpo, jogando-o no ombro esquerdo, carregando-o até o outro lado da cozinha.
Ficou de joelhos no chão e abriu o alçapão dali por uma alça de metal. Não perdeu tempo de descer, só despejou a recém-falecida ali e se despediu:
- Obrigado pela tarde tão agradável, meu bem. Suas amigas cuidarão bem de você ai embaixo - riu sozinho e fechou a tampa, voltando à poça de sangue da moça.
Pegou uma vassoura e alguns produtos. Tinha de começar a faxina logo, afinal, teria uma bela noite pela frente. E, ah, quase se esqueceu! Ainda tinha de tirar aquele seu Château Léoville Las Cases de sua adega. A safra de 2002 tinha sido uma das melhores, ele sempre se recordava.
- Temos cural e pamonha. Pamonha fresquinha, pamonha caseira. É o puro creme do milho verde. Venha prova, minha senhora, é uma delícia.
A voz começava a sussurrar novamente, distante. Estava se afastando, quase saindo da rua.
- Pobre coitado - pensou, com dó do vendedor.
Soubesse ele que a rua toda estava de luto pelas vinte e sete - e agora vinte e oito - mulheres desaparecidas misteriosamente, nem se atreveria a passar por ali, uma vez que as famílias não saíam mais de casa por um simples creme de milho verde.
Mas da Rua Miranda toda, as melhores já haviam sido comidas - em ambos os sentidos. "Talvez mês que vem eu comece a pesquisar as da Rua Alvorada", pensou, repassando mentalmente as moças da rua vizinha enquanto esfregava o chão com ardor.

Ps.: e não é que mandei embora meu bloqueio? He-he.
Natália Albertini.

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