A represa.

Sentada numa cadeira escura, numa posição confortável, com os joelhos altos e os braços cruzados sobre eles, vestia um simples vestido azul e branco.
Conversava de maneira animada com os amigos.
Falou-se alguma besteira, causando gargalhadas.
Ela mesma riu, distraída.
Todavia, olhou para um deles enquanto terminava a risada com um largo sorriso. O rapaz tinha os olhos fechados e jogava a cabeça para trás, rindo.
Aquilo a levou para um outro tempo, com um outro alguém, de gestos idênticos a aqueles.
Seu sorriso diminuiu vagarosamente.
Ela se lembrou daquela outra pessoa, lembrou-se de que a havia esquecido por vontade própria. E de fato não se arrependia daquilo, mas as lembranças lhe encharcaram a mente, tickling.
Grudou os olhos ao chão, já séria, enquanto os colegas se perdiam em uivos de risadas.
Lembrou-se também de uma outra pessoa, deixada para trás por vontade da cruel vida, e não por ela mesma. Lembrou-se de sua casa e da infância passada ali.
Recordou-se de todas as cicatrizes que tinha, de todos cortes ainda abertos, escondidos sob o tecido fino do vestido, de toda a represa de água salgada que estava sempre encarcerada em seu peito, a que ela havia aprendido a domar, porém nunca esquecer.
Deu-se por conta naquela tarde, como sempre se fazia ao menos uma vez ao dia, do quanto havia mudado. E de como havia ficado boa em fingir que não, em fingir que a vida lhe era sempre afável. Lembrou do quão cansada estava de forçar sorrisos e palavras, quando tudo o que lhe preenchia por dentro era silêncio.
Não conseguiu voltar a sorrir naquele dia, pelo menos não sinceramente.
E nem no dia seguinte. Nem no outro.
Oblíqua.
Dissimulada.

Natália Albertini.

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