Bola de Neve.

As aulas da semana haviam acabado e, pelo visto, todos haviam decidido pegar o mesmo ônibus que ela. Passou a catraca após uma piscadela do motorista e ajeitou a mochila nas costas, logo ajeitando-se numa brecha entre dois homenzarrões.
A garota era Lídia, ruiva de dezenove anos, pele branquíssima e olhos verdes. Seus olhos costumavam ser famintos e curiosos. Mas desde algum tempo atrás, estavam sem brilho, sem vontade de descobrir coisas novas. Afinal, o mundo todo era, pra ela, uma grande lixeira. É claro que haviam algumas pessoas que se salvavam por terem uma mente extraordinária ou coisa do tipo, mas de resto, quase tudo a desagradava.
O homem de sua esquerda, de alto porte e face demasiadamente desagradável a seus olhos, abaixou-se e, de maneira nem tão sutil, sussurrou algum tipo de porcaria, provavelmente do tipo das mais nojentas. Não era de seu feitio arranjar brigas, mas especialmente alí, ela teve uma enorme vontade de atingir-lhe a cara com um punho fechado e fazer seu nariz parar abaixo do olho direito. Mas não o fez, ela jamais teria coragem de fazê-lo, especialmente num ônibus lotado daquele. Afinal, o homem se inclinaria e cairia sobre outra pessoa, que a culparia por tudo.
Assim que deu o sinal para o ônibus parar no próximo ponto, afastou-se um pouco e passou por trás do estúpido que, desta vez, deu-lhe um tapinha no traseiro. Ela se esforçou para não lançar-lhe um olhar do tipo vou-te-matar. Continuou andando e parou à porta do ônibus, esperando que cesasse por completo para então descer. Durante aqueles segundos, pensou em como queria ter dado aquele belo golpe planejado. De forma repentina e brusca, sua bexiga cutucou-lhe, avisando-a que precisava descarregar. Lídia pediu-lhe que aguentasse mais um pouco, ao menos até chegar ao trabalho. O pedaço de Lídia aceitou, calou-se.
A moça desceu do ônibus, ajeitou novamente a mochila nas costas e começou a caminhar. O escritório de advocacia onde trabalhava como secretária ficava a nada mais que cinco quarteirões dalí.
Sentiu algo vibrar na região das costas e lembrou-se que tinha um daqueles pequenos aparelhos filhos da deterioração do mundo. Tirou um braço de uma das alsas e trouxe a mochila para o lado contrário, abrindo um dos zípers e pegando o pequeno telefone móvel. Fechou o zíper e voltou a arrumar a mochila, logo depois atendendo ao celular. Quem falava era sua mãe:
- Lídia, minha filha, por que demorou tant a atender?
- Mãe, não demorei mais que trinta segundos! - respondeu ela com sua voz fina e passiva.
- Isso pra mim já é motivo de preocupação. Trinta segundos de distração no trânsito podem levar a uma morte precoce, sabia disso?
- Sim, sabia, você me fala isso todos os dias. Por isso ando de ônibus: se eu morrer, a culpa não vai ser minha - e riu de leve.
- Pelo amor de Deus, Lídia Maria, que brincadeira de mal gosto!
Apenas sorriu, achando graça da preocupação da mãe. Continuou caminhando e olhando para o chão, distraída, esperando calada sua mãe voltar a falar.
- Minha filha, preciso de um favor.
- Eu sabia... - murmurou.
- O que disse?
- Nada, mãe, perguntei qual era o favor.
- Era, não, ainda é. Preciso que passe na lavanderia e pegue o terno de seu irmão para o baile de formatura de amanhã. E depois, se puder, passe no supermercado e traga-me papel toalha e guardanapos.
- Mãe, não sei se vou conseguir fazer isso...
- Como não vai?! É claro que vai! - Sua mãe enfatizou esta última frase, e agora estava aos berros.
- Mas você disse "se puder".
- Menina, além de tudo você está biruta? Eu não disse isso!
- Mãe...
- Ora, você vai fazer isso, sim!
- Mas mãe, eu estou indo para o trabalho agora, saio de lá às nove e vou para a casa do Danilo. Não tenho tempo.
- Casa do Danilo?! Você vai para a casa dele hoje e não me avisou?! Mas que falta de respeito com sua mãe! Já disse para me avisar!
- Mas eu avisei...
- Não avisou, não! E trate de me trazer o que te pedi AINDA HOJE!
Lídia teve uma enorme e quase incontrolável vontade de bater o telefone na cara da mãe e não aparecer em casa por uns dois dias. Mas não o fez, aliás, ela nunca o faria, não era do feitio dela. A bexiga apertou novamente, e Lídia pediu-lhe que esperasse. A mãe da garota falou por mais alguns minutos e depois clique: desligou.
Enfiou o celular no bolso e chegou ao escritório. Assim que colocou os pés na sala onde trabalhava, seu chefe a surpreendeu:
- Lídia! Por onde andava?! Tinha que estar aqui há vinte e cinco minutos!
- Não, seu Carlos, eu deveria estar aqui daqui a dez minutos, estou adiantada!
- Não está, não, senhorita! Eu te avisei ontem que deveria chegar mais cedo!
Ouviu o sermão enquanto tirava a mochila e o casaco. Há quanto tempo ouvia aquele sermão... Sempre a mesma coisa: ele reclamava de que nunca chegava na hora sendo que jamais a havia avisado quando deveria chegar. A vontade que tinha era de aumentar a voz, jogar-lhe tudo na cara e sair andando. Mas não o fez, aliás, nunca o faria, não era de seu feitio. E pensando bem, ela precisava daquele emprego. Não responder a toda aquela inquietação de seu chefe fez-lhe lembrar que deveria esvaziar a bexiga imediatamente. Esperou que seu Carlos disesse a última palavra para poder assentir e dar-lhe as costas, em direção ao banheiro. Porém houve um imprevisto: o chefe novamente. Ele segurou-a pelo braço, encarou-a e resmungou:
- Onde pensa que vai, senhorita? Você vai ficar aqui. Precisa arquivar todos estes processos - e apontou para a pilha que deveria ter no mínimo uns duzentos processos sobre a mesa dela.
Ela suspirou e pensou que na verdade, nunca acabaria aquilo se parasse para ir ao banheiro. Portanto sentou-se na cadeira que tanto lhe prejudicava as costas, mas da qual nunca reclamou, e começou o serviço.
Depois de aproximadamente duas horas daquela chatisse toda, Bianca, sua vizinha de mesa, veio cumprimentar-lhe e dizer-lhe que havia alguém no telefone e que era para a ruiva. Lídia levantou-se de dirigiu-se à mesa sobre a qual ficava o antigo telefone verde que sempre achou horrível, mas que jamais havia dito uma palavra sequer. Pegou o fone e o colocou à orelha:
- Alô?
- Lídia?
- Sim, sou eu, Dan.
- Ah, oi, meu amor.
- Oi.
- Como você está?
- Bem... E você?
- Também. Lí, preciso te pedir uma coisa.
- Não vai ser o único... - suspirou de maneira quase inaudível.
- Desculpe, o que disse?
- Nada, meu bem, prossiga.
- Será que poderíamos sair amanhã? É que me apareceu um compromisso inadiável de última hora, sabe como isso sempre acontece aqui na firma...
- Sim, sem problemas - disse, não muito convincente.
- Tem certeza?
- Sim, tenho.
- Então, está bem. Te ligo amanhã, ok?
- Uh-hun.
- Um beijo.
- Outro - e recolocou o fone no gancho.
Como teve vontade de dizer-lhe que sim, haviam problemas, que não estava tudo bem e que não aguentava mais aqueles seus compromissos inadiáveis. Mas não o fez, aliás, nunca o faria, não era de seu feitio e, pensando bem, ela não queria ficar solteira tão logo.
A bexiga a incomodou novamente, mas Lídia agora a ignorou e voltou para seu monótono serviço.
Nove e meia: hora de ir pra casa. Ou melhor, ora de fazer os afazeres de sua mãe, os tais "favores".
Deixou o escritório e foi andando até a lavanderia. Ao chegar, pediu o terno e a atendente respondeu-lhe:
- Preciso do boleto.
- Que boleto?
- O boleto que é entregue assim que deixa sua roupa aqui.
- Não estou com o boleto, mas minha mãe deve tê-lo...
- Então ela deve vir buscar o terno.
- Mas moça, a formatura do meu irmão é amanhã e ele realmente precisa do terno!
- Lamento, mas são as normas.
Teve uma vontade inimaginavelmente grande de mandar aquele seu sorrisinho cínico e suas normas ao inferno. Mas não o fez, aliás, nunca o faria, não era de seu feitio. E pensando bem, não queria inimizades gratuitamente. Deu-lhe as costas e dirigiu-se ao supermercado.
Pegou o necessário e dirigiu-se ao caixa para dez volumes. Cumprimentou a atendente e entregou-lhe os produtos, logo oferecendo-lhe seu cartão de crédito.
- Posso ver sua identificação?
- Fala sério?
- Claro - disse a atendente, surpresa com a reação da cliente.
- Ora, mas é um cartão de crédito, nunca ouvi essa de pedirem identificação...
- É a nova lei.
Ah, claro, a nova lei. Leis sem fim, isso era o que significava a Constituição. Que palhaçada! Os homens donos do Estado e de tudo o mais que pertencia a este não tinham mais o que fazer e ficavam inventado este tipinho de lei sem pé nem cabeça.
A vontade quase incontrolável desta vez foi de gritar e mandar tudo e todos ao inferno, ao quinto dos infernos, por melhor dizer. Mas não o fez, aliás, não o faria, não era de seu feitio. E pensando bem, o vontade não foi tão incontrolável assim. Afinal, conseguiu controlar. Já a vontade de esvaziar a bexiga, não.
Sentiu as calças molhadas comom não sentia desde que tinha um ano e meio de idade. Sentiu um líquido fino e quente molhar-lhe as pernas e as maçãs do rosto corarem como nunca.
A atendente apenas arregalou os olhos como nunca e dobrou o dorso, apoiando-se sobre os joelhos, cuidando-se para não cair de tanto rir.
Todos em volta olharam para ela e ficaram sem reação.
A vontade desta vez foi ter uma arma e atirar em todos dalí, mas não o fez, aliás, nunca o faria, apenas desta vez era algo bom que não fosse de seu feitio.

Natália Albertini.

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